quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O HOMEM

O farol celeste já se deitava sobre o horizonte tingindo o céu de vermelho.
"O sangue do Sol", disse enquanto assistia ao magnífico espetáculo natural e cotidiano.
Daquele ponto, não era possível ver nenhuma nave de transporte ou de caça cruzando o céu em todo seu campo de visão. Aliás, era esse o motivo dele escolher aquele lugar para sentar, apreciar a vista e meditar. Tudo tão primitivo, tão cru... Era o lugar ideal para sentir que se unia aos que vieram antes dele e aos que viessem depois. A energia que recebia e a que depositava naquele local.
"Good vibes", falou e em seguida riu daquela expressão ridícula.
Por fim, sentou-se e se concentrou.
"Eu me ligo a toda humanidade. Todos somos um. Tudo conectado".
Era o seu mantra.
Repetia a frase até que ela não fosse mais inteligível e se tornasse apenas um zumbido. Um zumbido que o transportava para a mais antiga das eras.
Diante de si, via a aurora do Homem. Aquele ser inseguro, porém, contraditoriamente decidido, levantando-se e andando sobre as duas pernas. Segurando um pedaço de osso, madeira ou até mesmo uma pedra. Erguendo a nova ferramenta sobre si e atingindo o seu alvo. Com esse movimento, o Homem mudou o rumo de todas as vidas no planeta.
Quantas outras vidas deixaram de existir ou foram condenadas após aquele simples movimento! Quanta coisa foi criada!
Obras de arte; prédios; músicas; gargalhadas; instrumentos; deus; dor; massacre; sangue...
O zumbido ficava cada vez mais intenso e sua mente zapeava cada vez mais rápido! Deslizava pela história da Humanidade. E, de repente, estava diante do Homem do Futuro. Este, tão distante do seu ancestral, deixara a tarefa de andar para as máquinas. Aliás, qualquer tarefa, era realizada por máquinas. O Homem do Futuro apenas pensava. Sua ferramenta era - talvez sempre tenha sido - sua imaginação. Idealizava e, tão rápido quanto o próprio pensamento, as máquinas concretizavam. Não havia fronteiras para a mente humana. Tantas outras obras de arte, construções, músicas foram criadas seguindo os ideais da perfeição.
Tantas outras guerras, carnificinas e sangue, em nome de um progresso que sequer olhava para o lado. Sempre à frente.
Voltava o pensamento novamente ao passado. O homem conectado à Natureza. Aquele que estava em comunhão com tudo e todos.
Rodava por todas as eras... Encantava-se ao ver uma criança que aprendia e falava as primeiras palavras; ou pelas mulheres que, em volta de uma fogueira, diziam palavras desconhecidas, e se comportavam como loucas, nuas, felizes; o sorriso estampado na face da amante após o gozo; o sangue que derramava do peito do soldado abatido; a lágrima de dor que escorria no rosto do homem abandonado no altar; a mão estendida para ajudar o outro a levantar; a mão que descia com fúria e desferia um golpe no indefeso; o som de água corrente; a gargalhada inocente; o intangível amor ao próximo--

De repente, foi tirado do seu transe quando o seu comunicador vibrou e fez o característico som de chamada vindo da Central. Atendeu apenas pelo sistema de áudio, não queria que vissem onde ele estava.
Antes mesmo de falar qualquer coisa, uma voz começou:

- D6M82, dróide exterminador, na escuta? - perguntou uma voz metalizada.
- D6M82 na escuta, Central. - respondeu o dróide.
- Dróide, foi localizado um grupo de humanos refugiados no seu setor. Você esta recebendo agora mesmo as coordenadas. Aproveite que está escurecendo e dirija-se ao local indicado, com urgência! A emboscada não pode falhar e não deverá ter sobreviventes e/ou fugitivos.
- Entendido. Câmbio e desligo.


O dróide exterminador desligou o seu dispositivo replicador de sentimento humano, pôs-se de pé e seguiu o caminho para cumprir com sua tarefa e eliminar o que considerava ser um vírus. O vírus que o havia criado, mas que também havia destruído toda e qualquer forma de vida sobre a Terra. O insignificante e dispensável homem.

domingo, 31 de julho de 2016

PELEJA

A minha peleja foi essa:
Dormir, ninguém mais pode
Na minha porta, um estrondo
Ouvi uma voz e procurei o dono
Curioso, olhei pela fresta

Era ele, Malatesta
- um imenso balrog -
Perguntou por que não abandono
A Vida dos meus sonhos
E levo uma vida de festa.

Ora, veja essa
- meio grogue -
Respondi à besta, sou feito de carbono
A terra há de comer o meu crânio
Mas não quero o que não presta

“O que não presta”
De sua boca mole
Pendia uma língua de cachorro
“E digo mais, eu ainda hei de ouvir o teu choro
Nem que eu tenha que fazer uma guerra!”

Riu a fera
Com feições de bode
Seu corpo tremia todo
E dizia, cada vez mais nervoso
“Farei da tua pele a minha tela!”

Há de ser bela!
Mas, daqui, tu não me move
Não serás tu quem vai perturbar o meu sono
Cobri-me com o meu manto

E finalizei: Quer saber? Vai à merda!

sábado, 30 de julho de 2016

UMA NOVA ERA

Estava comendo quando foi tomado por alguns devaneios... Lembrou da época em que as pessoas usavam a Internet. Todas vidradas olhando para os seus dispositivos de comunicação e os dedos frenéticos bailando sobre a tela, digitando suas incontáveis conversas, posts, reclamações, tweets e etc.
Diziam que ninguém se falava mais. Que todos ignoravam todos. Que, finalmente, a individualidade prevalecera... Mal sabiam que quando viessem a Era das Trevas isso seria muito pior.
Tão logo a energia se foi - consequentemente, a Internet também -, as pessoas caíram em um turbilhão de emoções. Depressão, medo, fraqueza, loucura e raiva. Muita raiva. Agiam com fúria. E precisavam descarregar toda aquela frustração de terem sido privados da vida conectada. A violência se fez presente em quase todos os lugares.
Alguns "heróis" tentaram criar meios de resolver isso, utilizando energias alternativas, renováveis, nucleares... Mas falharam. Algo inexplicável aconteceu e nenhum tipo de energia durava. Como mágica, ou maldição, os mecanismos eletrônicos não funcionavam. Foi cogitada a possibilidade de voltar a Era a Vapor e os entusiastas de um certo estilo vibraram achando que iriam ver seus sonhos virando realidade. Mas isso também não aconteceu. Energia alguma durava, sustentava, funcionava. E isso só piorava os ânimos. As pessoas queriam explicações, mas com as comunicações paradas, todas as informações que circulavam eram incompletas, incertas e por vezes, mentirosas.
Óbvio que algumas pessoas se aproveitavam de outras para tomar vantagem.
Falsos profetas surgiram aos borbotões. Por sorte, muitos deles foram degolados quando não conseguiram suprir toda necessidade que o povo desejava. A humanidade havia tomado um rumo que parecia não se importar aonde iria chegar.
Um outro grupo, tentando a todo custo não ser comparado com aqueles – e isso se dava muito mais pelo desejo elitista de “ser diferente” do que com a preocupação pelo ser humano –, conseguiu criar uma regra que logo foi adotada. Para mostrar que ainda eram da Era da Tecnologia, que não importava a ausência dela, foi decidido que todos deveriam manter o hábito de agitar os polegares como se estivessem com um objeto eletrônico nas mãos e o manipulassem. Aquelas pessoas que se sentiam muito idiotas por fazer isso, seguravam algo para emular um aparelho. Outros, não. Defendiam a ideia de que não era o aparelho (nem a Tecnologia) que os fazia civilizados, portanto, agitariam os dedos sim (afinal, não queriam ser excluídos), mas sem nada em mãos. Diziam até que era mais chique.
Essa ideia se espalhou de tal forma que, em pouco tempo, era possível ver as pessoas por todos os lugares com mãos vazias (ou não) e os dedos agitando no ar.
Os debochados passaram a chamar essas pessoas de "tamboriladores" ou, logo depois, de "tambor" (a medida que o tempo foi passando e a necessidade ou vontade de se comunicar ficando mais escassa). E o apelido pegou tão rápido quanto o ato de tamborilar.
As pessoas levavam tão a sério a necessidade de mexer os dedos que com o tempo, aquilo já acontecia naturalmente. Os que nasceram já sob o signo da Escuridão, desde cedo aprendiam a agitar os dedos, mesmo sem ter ideia do porquê faziam aquilo. Era tão natural quanto respirar.
Entre aqueles que degolavam pessoas e faziam justiça com as próprias mãos, mais conhecidos como Bárbaros, também discutiu-se a validade de tamborilar. Alguns achavam um absurdo e propunham decepar os dedos daquele que fizesse isso. Porém, muitos achavam que isso era extremismo (parece que degolar pessoas, não!) e decidiram apenas por excluir de sua nova sociedade as pessoas que insistiam em viver do passado. Então, surgiu uma variação de bárbaros, os Bárbaros Tambor.
Na verdade, para cada desentendimento, um grupo quando não era dizimado, era excluído e, assim, nascia uma nova ordem. Nomes e mais nomes foram surgindo.
Reis, imperadores, presidentes ou ditadores apareciam com o nascer do Sol e caíam antes mesmo que este chegasse ao Oeste.
De repente, ninguém mais queria ser líder. Porém, todos queriam ser liderados, pois não sabiam o que fazer. Em um momento ou outro, era inevitável surgir um. Mas nunca se mantinha por muito tempo. O povo era instável. Não sabia viver sem regras, mas cada vez que aparecia alguém disposto a segui-las, logo era retirado cargo. Isso foi acontecendo com mais e mais frequência.
E assim, a humanidade passou a viver cada vez mais em grupo menores. Laços de sangue ou sentimentos não eram motivos para manter as pessoas próximas. Toda divergência era resolvida com luta, agressões, exclusão ou a morte.
Fugindo uns dos outros, escondiam-se nos esgotos, topos de árvores, buracos... E mesmo aqueles que viviam em grupos, quase não se falavam, se olhavam e, menos ainda, se tocavam.
A fala foi praticamente reduzida a rosnados.
Já não viviam com regras, apenas instinto. Respirar, comer, beber, defecar, guerrear, matar, procriar e tamborilar.
Finalmente, a Humanidade tomou sua real forma: bichos.

Enquanto ele comia, e lembrava das pessoas quando ainda não eram selvagens, ou não se mostravam como tal, até sentiu saudade. Ele era um dos poucos antigos. Daqueles que viveu uma época que quase ninguém lembrava mais. Daria tudo para ver as pessoas com seus dedos em movimentos frenéticos sobre uma tela luminosa e sorrindo para o vazio, como antigamente.
Mas, agora, tudo aquilo não passava de um passado, não muito distante, porém, impossível de ser revivido. Ele terminou de comer o rato que capturara com tanta dificuldade, inspirou fundo e se preparava para voltar para a sua toca. Não era seguro ficar exposto naquele lugar.

Seguiu seu caminho e nem percebeu que seus dedos – sujos de sangue – já não tamborilavam mais.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

OS INOCENTES

"O choro dos inocentes". Pensou ou falou – ele estava com tanto sono que nem tinha certeza qual das duas ações aconteceu. Mas o que sabe é que foi acordado com o choro do bebê dos vizinhos. O que, além de deixá-lo aborrecido, por ter sido acordado em um dia que não precisava levantar cedo, o deixou também intrigado, afinal, aquela criança dificilmente chorava, e menos ainda tão alto e tão esganiçado. Era até um dos motivos que o fazia sorrir para o bebê quando o via.
Não, não gostava de crianças. E para aumentar o seu desagrado, fora acordado com um choro estridente e não restavam dúvidas, era o bebê dos vizinhos. Levantou-se, banhou-se e tomou o café da manhã ouvindo a triste sinfonia de um choro agoniado. Ao sair do seu apartamento, pensou em bater na porta ao lado e perguntar se podia ajudar. Mas o que ele entendia de crianças? De choro? E de interação com vizinhos? Nada! Essa era a resposta para todas as perguntas.
Saiu mais irritado do que o normal e, talvez por isso, não percebeu que, em todo o edifício podia-se ouvir crianças chorando!
De dentro do seu carro, com as janelas cerradas e o rádio ligado, ignorava também o choro que vinha de todos os lugares. Ruas, casas, edifícios, escolas...
O trânsito completamente livre ajudou a aliviar a tensão, mesmo estranhando tal acontecimento. Chegou a perguntar-se se o dia de hoje era domingo ou feriado.
No escritório até esqueceu o episódio com o vizinho bebê. E o substituiu por uma nova preocupação: a ausência da secretária. Além de não ter aparecido para trabalhar – o que era algo totalmente novo –, não ligou ou enviou qualquer mensagem informando o motivo da falta – o que era completamente inadmissível. Resolveu levar a manhã sem esperar por ela. Depois resolveria esse assunto. E tudo correu bem. Porém, na hora do almoço, todo o seu pavor foi renovado.
Sem a secretária, teve que sair para providenciar a própria refeição. Mas não fora isso que o assombrou, apesar de estar acostumado com as benesses de ter alguém que fizesse coisas para ele – como pegar o seu almoço – sabia se virar sozinho muito bem. O pavor outrora citado se deu quando precisou sair do prédio e começou a ouvir um choro constante no caminho do mercado. Quando chegou lá, ouviu novamente gritos e choros e, desta vez, não era apenas uma criança. Eram muitas. Tinha certeza!
Percebeu que não havia nenhum funcionário ou cliente no local. Mas o indistinguível choro se fazia presente. Vasculhou todos os lugares a procura das crianças, mas também não estavam lá. Apenas os seus lamentos mais profundos davam vida – ou o anúncio da morte – ao ambiente deserto.
Ligou para a polícia, e não teve sucesso. Ficou desesperado e resolveu pedir ajuda nos prédios vizinhos. Porém, não havia sequer os porteiros!
Voltou às pressas ao escritório. Agora, atento a tudo, percebeu a ausência dos funcionários do prédio. Sem porteiros, faxineiros, seguranças... Nos outros escritórios, tudo vazio também.
Foi direto à garagem, entrou em seu carro e saiu em disparada. Precisava encontrar alguém que o ajudasse. Desta vez, com as janelas abertas, pode ouvir choros e gritos. Alguns mais próximos do que outros, mas todos igualmente desesperadores.
Em uma rua, reduziu a velocidade do carro, colocou a cabeça para fora e gritou em direção às casas pedindo ajuda. A única resposta que teve, foi o assombroso choro.

Rodou com o carro por todos os lugares até que a gasolina acabou e o veículo parou. O medo invadia seu corpo. Estava paralisado e todos os seus sentidos prestes a explodir de tanta tensão. Não aguentando mais, resolveu sair do carro, sentou-se na calçada, pôs as mãos na cabeça e, angustiado e desnorteado, finalmente encontrou o seu choro fazendo parte daquele coral lamurioso.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

SANTINHO

Dona Gertrudes era a curandeira do vilarejo. Apesar dela ser tão antiga quanto aquele povoado, em sua casinha afastada de todos, exercia o ofício há menos de quinze anos, desde a chegada de Santinho, seu gatinho.
Talvez por respeito a sua idade, ou pelos acertos, ou simplesmente por não terem parado pra pensar sobre, ela nunca fora questionada por ter começado a fazer o que fazia em momento tão tardio da vida. Até porque, outras coisas chamavam bem mais a atenção de todos, como o seu nada ortodoxo tratamento.
Mas era certo que dona Gertrudes nunca falhava no diagnóstico, para o bem ou para o mal. Com seu jeitinho de vovozinha, calma e sábia, dava a notícia – boa ou má – sempre com muita honestidade e respeito.
E Santinho não desgrudava dela. Todos diziam que ele era o seu ajudante. Porém, imediatamente ela corrigia! E aí se apresentava a única excentricidade de dona Gertrudes: ela insistia que Santinho não era seu ajudante. E sim, ela é que era um instrumento dele. Segundo a curandeira, era o gato quem diagnosticava o problema e sabia a forma de tratar o paciente. Logo, era ele quem curava. E quando ele se recusava em se aproximar de alguém, não havia mais o que fazer. Ela pedia as mais sinceras desculpas e aconselhava a pessoa a viver (o quanto que fosse) da melhor forma possível.
De início, esse comportamento excêntrico, sem dúvida, chamou a atenção, criou alguns desafetos, e até despertou a ira dos religiosos – independente de qual fosse a religião! Afinal, onde já se viu um gato curandeiro?! Se uma mulher curandeira não fosse heresia suficiente, certamente, um gato seria! Chegou a receber a visita do pároco da cidade que lhe pedia que, ao menos, mudasse o discurso. Que atribuísse seus dons a Deus. Apesar de recebê-lo com a educação de sempre, a velhinha se recusou a falar outra coisa que não a verdade. E ainda completou que não queria desapontar o Santinho, afinal, era ele mesmo quem curava as pessoas, não Deus.
Vencido pelo cansaço, o padre foi embora de lá. Decidiu lavar as mãos para aquela situação.
Ela recebeu também a visita de fiéis de várias religiões que se uniram pela primeira vez, porém, com um propósito menos cordial. Foram até lá para destruir a morada da velha. Por sorte, ela tinha seus seguidores também. E estes, a protegeram. Foi um dia atípico para aquela região tão pacata. Ou, pelo menos, todos gostavam de dizer que lá era assim, “uma cidade com pessoas de bem”. Mas não foi bem o que aconteceu. Não houve mortes, mas não foi algo para se orgulhar.
Ela, inabalável a tudo isso, seguia em frente...
Quando o delegado foi averiguar o que acontecia naquela casa, devido ao tumulto que surgia desde a cidade e se espalhava por todos os vilarejos próximos, não teve muito que fazer, ainda mais quando ela argumentou que "não saía de casa, eram as pessoas que a procuravam". E era verdade. Todos que foram curados por dona Gertrudes – ou Santinho – sempre foram até a casa dela. Ela nunca saiu de lá para curar alguém. Até porque, segundo ela, era exigência de Santinho. Ele não saía. Logo, as pessoas que fossem até lá.
Sem ter mais nada a dizer ou perguntar e curioso sobre uma dor nas costas que o atormentava há anos, o homem aproveitou a visita e se consultou com a senhora. Esta lhe pediu que deitasse sobre a mesa da cozinha, que servia de maca nesses momentos.
Após o delegado deitar, dona Gertrudes pediu a Santinho – que estava junto a seu pé esquerdo – que descobrisse o que atormentava aquele senhor. Santinho prontamente pulou sobre as costas do homem que teve um espasmo de susto, mas manteve-se deitado e calado.
O gato cheirou, caminhou, passou a pata levemente sobre um ponto, olhou para a senhora e miou. Um miado rápido e agudo. Ela gemeu em consentimento. O agente da lei questionou se o gato descobrira algo ruim e, em seguida, sentiu-se idiota por acreditar que era realmente o gato quem descobria o problema e curava.
Ela disse que não era nada de ruim. Ou, pelo menos, era algo que podia ser curado. O que ele tinha era "Isso, isso! E bastava tomar aquilo, aquilo!" para ficar tudo bem.
O delegado agradeceu e saiu. Até que um pouco aliviado por descobrir o que lhe afligia e a possibilidade de uma cura. E ignorou intencionalmente o gato que o observava.
Apesar do paradoxal comportamento do homem, afinal, estava descrente, mas pediu ajuda, sabe-se que ele nunca mais reclamou de dor alguma.
Porém, tudo isso é passado. Foram apenas coisas do começo. Numa cidade cercada por hipocrisia, muitos dos que a trataram mal lá atrás, tempos depois, de um jeito ou de outro, a procuraram e se beneficiaram de sua ajuda.
Atualmente, a velhinha encontrara a paz. As pessoas já não a importunavam. Só a procuravam por seus préstimos. E ela atendia apenas se Santinho quisesse. Afinal, o gatinho tinha quinze anos, seu corpo já apresentava todos os sinais de velhice que um idoso pode carregar. Não era fácil levantar ou mesmo caminhar.
Em uma noite, na hora de deitar para dormir, Santinho não conseguiu subir na cama de dona Gertrudes. Ela o tomou em seus braços e o carregou como se carregasse um bebê.

- Chegou a hora de ir, Santinho? – perguntou a velhinha num tom choroso.
- Sim. – respondeu o bichano.
- E o que vai ser de mim?
- Você vem comigo. Assim como todos os outros.
- Mesmo os que você não curou?
- Todos.
- Precisa mesmo fazer isso?
- Foi o combinado desde o princípio. Assim que eu cheguei, disse pra você que levaria todos.
           
Ela apenas assentiu. Santinho estendeu a sua pata e tocou o rosto da velha. Os dois desabaram no chão, já sem vida.
Os seus corpos teriam sido descobertos no dia seguinte se todos no vilarejo, nos vilarejos vizinhos e na cidade, também não estivessem sem vida naquele momento.
Demorou alguns dias até que alguém de passagem pela cidade descobrisse aquele terrível evento: todos mortos. Corpos inanimados espalhados por todos os lugares. Não apresentavam sinais de violência, envenenamento ou qualquer outro tipo de assassinato. Foi como se, simplesmente, a Vida desistisse daquele lugar.
Ninguém nunca se atreveu a povoar aquela região novamente e até alteraram as rotas que passavam por ali. Juravam ser um lugar assombrado ou amaldiçoado.
O vento e a luz do Sol eram os únicos que caminhavam por aquelas ruas.

E em uma casinha no meio do nada, jaz o esqueleto nunca descoberto de uma senhora e em seus ossudos braços, o corpo imaculado de um gato.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

ANUNCIAÇÃO*

Saiu de casa. Fechou a porta. Quando colocou o pé na calçada, percebeu que pisara em uma enorme minhoca. E apesar daquela criatura ter a metade do seu corpo destruída, a outra metade – irrequieta – parecia exigir o direito de viver!
Ele controlou o asco e continuou o seu caminho. E até já havia esquecido o episódio com o longilíneo ser, quando se deparou com uma porção de vermes, também na calçada, se estrebuchando. Achou estranho, pois não havia nenhuma matéria putrefata no local que justificasse aquela cena.
Sentiu um calafrio na espinha. Porém, agitou a cabeça na tentativa de esquecer aquilo.
Andava rápido e tenso.
À frente, um enxame de moscas fazia um tipo de bloqueio muito sinistro no seu caminho. Moscas pequenas, grandes, escuras, verdes... De todos os tipos. E um zumbido exasperante. Espanou a mão no ar para espantar os insetos. E rompeu a barreira, correndo, com a boca e os olhos fechados.
Sentiu-se perturbado por todos esses eventos.
Com um passo nervoso, sentindo ânsia de vômito, olhava para trás todo instante tendo a sensação de estar sendo seguido, andava cada vez mais rápido. Tropeçou nos próprios pés e caiu. Deu com a cara no solo.
Ainda com medo, porém, sentindo mais raiva naquele momento devido à própria distração, praguejou. No entanto, sua atenção foi chamada para o alto ao ouvir o grasnar de um urubu que estava em cima de um muro e olhava diretamente para ele. Um horror profundo tomou conta do seu ser. Suas mãos encresparam agarrando o chão numa tentativa débil de não ser arrancado dali pela lúgubre criatura.
Um grito mudo saiu de sua boca e, em seu coração, pedia a todas as divindades que aquilo parasse.
Saindo do transe, levantou-se de pronto e correu o mais rápido que pode. Atravessou a rua sem olhar para os lados e um carro acertou-lhe em cheio.
Seu corpo foi lançado para a calçada oposta. Pousou no chão quente já sem vida.
O seu rosto era a própria imagem do terror congelada para sempre nele. Pessoas foram se aproximando para ver de perto a infelicidade que caíra sobre aquele pobre homem. Não para se compadecer de sua morte, mas mais para se sentirem aliviadas por não serem elas a escolhida para fazer a inevitável viagem.
Entre os curiosos, uma figura anormalmente alta e magra, aproximou-se mais e, com seus longos dedos, tocou levemente sua face, ajudou a fechar-lhe os olhos, segurou a mão daquele desgraçado e a apertou com força.
Aproximou a boca quase descarnada do ouvido dele e sussurrou:


- Cheguei.


(*)TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA ELETRÔNICA "VEM-VÉRTEBRAS"

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

CRUEL

Há horas que ele estava sentado na poltrona, segurando uma arma. Apontava-a para a cabeça, logo em seguida abaixava-a.

- É agora ou nunca. – disse, apontando mais uma vez. Porém, desistiu. – Acho que, pelo visto, é nunca. Sou um fraco.

Aos poucos, bem diante dos seus olhos, apareceu sentada em uma cadeira próxima, uma figura bastante estranha. Pensou que, talvez por causa do cansaço, seus olhos lhe pregavam uma peça. Mas aquela criatura lhe pareceu ser conhecida, apesar de estranha.
Era a Morte.

- Quem é você? – pergunta o homem segurando a arma e pensando em apontar para a tal figura.
- Não parece óbvio pra você? – devolveu.
- Veio me buscar?
- Hunrum. Mas ‘tou esperando você se decidir.
- Como?! E não é você que nos leva?
- Exato. Eu levo. Mas eu não mato ninguém.
- Não entendi.
- Assim... Eu sou a consequência, não sou o ato.
- Como não?! S’é você que nos leva!
- Entenda. Eu não olho pra pessoa e simplesmente levo comigo. Tem que ser o momento da pessoa.
- E agora é o meu momento?
- Isso quem vai decidir é você.
- Eu? Como assim?
- Livre arbítrio, meu caro. Livre arbítrio.
- Então, eu é que decido, é isso?
- Mais ou menos.
- Ei! Mas uma pessoa que sofre um ataque cardíaco, por exemplo, não escolheu isso pra ela.
- É... bom... ahn...
- Ihhh... ‘Tá se contradizendo, né?
- Isso tudo não é tão simples assim. O que você precisa saber é que, quando vocês nascem, já estão... – como posso dizer? – marcados para morrer. Mas em qual situação isso vai ocorrer, já é com vocês. Só quero que saiba que, não gosto de vê-los sofrer neste momento.
- É? E por que você usa essa foice? Vai me dizer que isso aí não dói? – disse enquanto apontava para a foice que a Morte carregava.
- Não, não. Esta foice é apenas figurativa. Você é que quis me ver assim. – apressa-se a Morte em justificar tal ferramenta.
- Eu mesmo, não!! Nunca fiz questão em lhe ver.
- Ah, não? E isso aí na sua mão? – pergunta a Morte, apontando para a arma.
- Bem... bom... Ah, não tenho que lhe dar satisfação.
- Sem dúvida.
- Em todo caso, desisti do suicídio.
- Que bom!
- E você, não vai embora?
- Acho que você não entendeu a nossa conversa.
- É, acho que nã-- Peraí!! Você que dizer que...
- Hunrum.
- Mas e a história de “livre arbítrio”?
- Com relação ao momento, não ao dia.
- Mentirosa.
- Eu não menti! Você é que não entendeu.
- Você é muito cruel.
- Sinto muito.
- Sente nada.
- Ok. Não sinto, não. Apenas não queria deixá-lo desconsolado.
- Hum. Obrigado!

Ele ficou um pouco desconcertado, colocou a arma sobre a mesinha ao lado da poltrona. Os olhos começaram a marejar, depois caiu em um choro descontrolado.

- Eu não quero morrer!!
- Mas você estava com uma arma na mão, apontando para a própria cabeça!
- Não interessa. ‘Tava fazendo aquilo pra ver se me motivava a querer viver.
- Hum... Jeito estranho, viu!
- Você é cruel. Não entende nada disso. Como é que alguém morto vai entender de vida, hein?
- Olha, pode gritar à vontade, mas nada disso vai mudar. Eu apenas executo. Cumpro com uma lista. Antes mesmo de você nascer, seu nome já constava nesta lista aqui. – disse a Morte, apontando para um pergaminho que retirou de sua manga.
- Ah, é? Então, vamos lá. Faça! Arranque a minha cabeça com essa foice. Vamos!
- Uau! ‘Cê deveria ter sido ator ao invés de vendedor.

Ele levanta-se da cadeira, e caminha até o quarto.

- Aonde vai? – pergunta a Morte, levantando-se e seguindo-o.
- Não quero morrer assim. Vou trocar de roupa. E você, fique aí. Não quero que me veja trocar de roupa.
- Acredito que não será necessário lembrar-lhe que não adianta fugir, não é?
- Não, não é. Volto logo. – ao concluir a frase, bateu a porta na cara da Morte.
- Ok. – disse a Morte e voltou para a poltrona.

Após alguns minutos, ele aparece à porta. Com seu melhor terno, barbeado e perfumado.

- Hum. – falou, surpresa em vê-lo todo arrumado.
- Que tal?
- Muito bom! – bateu palmas.
- Obrigado!

Sentou-se novamente na poltrona. Ajeitou cuidadosamente o vinco da calça. Juntou as pontas dos dedos e pigarreou alto.

- Então, vamos lá? – disse de forma austera.
- Nossa! Vejo que se recompôs.
- Nunca fui homem de fugir das coisas. Posso até fraquejar, mas fugir, não.
- Ok.
- Como assim “ok”?
- Eu cheguei cedo porque pensei que você ia antecipar, mas o jeito é esperar.
- Você é realmente cruel. Não tem a menor piedade.
- Meu trabalho não é ter piedade.
- Percebi.

Após algumas horas, e um silencio sepulcral, a Morte levanta-se, pega sua foice e segue em direção a ele.

- Ei, espere um instante.
- Sim?
- Por que é que você pegou a foice? ‘Cê não disse qu’ela era figurativa?
- E é.
- Mas pra que ‘tá vindo em minha direção com ela na mão?
- Eu a utilizo para ceifar a vida. É claro que ela não vai parti-lo ao meio. Mas preciso dela.
- Além de cruel, é mentirosa.
- Ora, vamos. Também não é pra tanto.
- Aham, claro. Falar é fácil, afinal, não é você que ‘tá morrendo.
- Já estou morta, lembra?
- Ah, é. – disse desconcertado. - Outra coisa... Como é que vou morrer?
- Parada cardíaca. – respondeu de forma displicente.
- Mas não tenho nenhum problema no coração!
- Essas coisas acontecem.
- Cruel. Muito cruel.

A Morte projeta a foice para frente e crava a lâmina no peito dele, porém, não saiu sangue do local atingido. Ao retirar a lâmina, a alma veio segurando na lâmina.

- Então, é assim? – perguntou, olhando para o seu corpo sem vida, sentado na poltrona.
- É. E nem doeu.
- Verdade... E agora?
- Agora você me segue.
- Não dá pra fazer aquela última visita as pessoas que amo?
- Isso só acontece em filmes, querido. E se você tivesse a quem amar, não teria pensado em suicídio.
- Cruel.
- Me chamando assim, vou me acostumar.
- Cruel e sarcástica.
- Vamos, já está no meu horário.
- Vamos por onde?
- Basta seguir aquela luz, ali, oh.

Os dois seguiram em direção à luz e sumiram.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A FIRMA*

Ainda prefiro a existência à extinção.
Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos”
Freud


A porta da frente do escritório tinha apenas um nome – feito com letras adesivas: “Firma”. Assim mesmo, com o “F” maiúsculo. Rodolfo não tinha certeza se era mesmo aquele o lugar que deveria ir, apesar do endereço que tinha anotado, bater com o local.
A Firma não estava na lista telefônica. Chegou lá por indicação. Dizem que é o único modo de ser atendido. Rodolfo adora pensar nessa frase e, principalmente, na palavra “Dizem”! Ou seja, nada é certo. Ninguém sabe de verdade das coisas. Dá um ar de mistério e clandestinidade para o seu feito.
Rodolfo tocou o interfone e, hesitante, disse seu nome. Pediram que esperasse. Após alguns minutos, o que para Rodolfo pareceu uma eternidade – e até o fez pensar em ir embora –, alguém abriu a porta para ele. Foi convidado a entrar. Sentou na sala de espera. Não era o único. Lá, tinha outros homens esperando [percebeu que não havia nenhuma mulher ali]. Todos aparentavam ser mais velhos que ele, porém, igualmente tristes. Alguns, bem mais tristes.
Ninguém se falava e nem se olhava. Porém, como numa coreografia estranha, seus movimentos eram parecidos. E agarravam algo ao colo. Uma mochila, sacola, bolsa, caixa... Como se tudo dependesse daquilo que carregavam. Automaticamente, Rodolfo apalpou a sua pasta para se certificar que trouxera o seu. E, agora, inconscientemente se sentindo parte daquele grupo, também agarrou sua pasta e passou a repetir os mesmos movimentos.
Um a um os homens eram chamados para a outra sala. E quando saíam, pareciam mais aliviados e felizes até.
Rodolfo observava os que ainda não haviam sido chamados, se pegou montando uma narrativa para cada homem ali. Em seguida, perdeu-se em pensamentos sobre tudo o que poderia acontecer com ele depois daquele momento. A transformação pela qual sua Vida iria passar.
Ainda absorto nos seus devaneios, ele foi tirado do seu transe quando ouviu o próprio nome. Levantou-se de pronto e foi até a outra sala. Esta menor que a sala de espera, tinha apenas uma mesa de escritório, a cadeira em que estava o homem a espera de Rodolfo e outra cadeira. Mas nenhum livro. “Que tipo de agência literária era aquela sem uma estante com um livro sequer?”, pensou.
O homem ofereceu o seu melhor sorriso a Rodolfo. Este, por sua vez, ficou em pé, parado. Após a indicação para sentar, ele caminhou sem jeito até a cadeira, arrastou-a fazendo um barulho desagradável, depois sentou.

- Então, senhor Rodolfo, conte-me sua história. – perguntou o homem ainda sustentando o seu sorriso.
- Minha história... – repetiu Rodolfo na tentativa de ganhar tempo para organizar os pensamentos e poder contar a “sua história”.
- Sim, sua história.
- Minha história ou “minha história”? – perguntou e ergueu a pasta para que o seu interlocutor a visse.
- Não, não, senhor Rodolfo, a sua história mesmo. Depois falaremos sobre essa história aí. – finalizou apontando para a pasta.
- Posso saber como funciona aqui?
- O senhor saberá depois que me contar a sua história.
- Ok. Minha história...

Rodolfo parecia incerto. Não sabia por onde começar ou o que contar. Pensou que, já que finalmente alguém se importava em saber algo sobre ele, deveria contar algo sensacional, repleto de aventuras, mistérios, casos amorosos... Mas a verdade é que, fora as histórias que Rodolfo criava – em seus textos –, nada de interessante acontecia com ele. Permaneceu calado. O sorriso do homem começava a desmoronar e, já sem paciência, ele resolveu quebrar o silêncio.

- O senhor precisa entender que, para que a Firma possa ajudá-lo, nós temos que saber algo sobre o senhor: O que o motivou a nos procurar; O que o senhor espera dos nossos serviços; Como vamos, é, ajudar o senhor... São vários fatores.
- Acontece, senhor-- – interrompeu-se – Como é mesmo o nome do senhor?
- Demóstenes.
- Certo. Acontece, senhor Demóstenes, que eu não tenho nada de interessante para contar, logo, eu não sei o que contar.
- Mas ninguém pediu uma história interessante. Quero apenas que me fale sobre o senhor.
- Bom, s’é assim... Eu tenho 30 anos. Sou solteiro. Sou filho único, ainda moro com os meus pais e trabalho em um escritório.
- O que faz lá?
- Sinceramente, nem eu sei.
- Entendo.

Depois de um breve silêncio, o senhor Demóstenes continuou.

- E qual é a sua atividade? Digo, o que o senhor pretende conosco?
- Aqui é uma agência literária, não? Eu escrevo desde os 10 anos de idade, mas nunca publiquei um livro. E é isso o que eu pretendo.
- O senhor tentou publicá-los antes?
- Claro que sim. Mas nunca consegui. Não fui aceito em nenhuma editora.
- E publicação independente, tentou?
- Não disponho de uma quantia necessária para fazer isso.
- Senhor Rodolfo, o senhor quer apenas ser publicado ou quer vender e ter fama?
- As duas coisas! – respondeu quase num ganido.
- Como o senhor ficou sabendo sobre a Firma?
- É um pouco embaraçoso, preferia não responder isso.
- Então, acho melhor ir embora. Aqui, nós não temos tempo para perder com “embaraços”, senhor Rodolfo. Aqui ajudamos os nossos clientes a realizarem seus sonhos.
- Mas o senhor não entende... – tentou protestar sem muita convicção.
- Se o senhor não me contar, realmente, não entenderei! – o senhor Demóstenes finalizou e, após falar isso, recostou-se no espaldar de sua cadeira, cruzou os dedos sobre a barriga farta e com a boca franzida forçava uma respiração pesada pelo nariz.

Rodolfo analisava como poderia contar para Demóstenes sobre a noite que conheceu o homem que lhe indicou a Firma sem correr o risco de perder a chance de ser publicado. Porém, se não contasse, perderia a chance de ser publicado.
Então, as lembranças vieram como uma enchente, e inundaram sua mente.

***

Cinco noites atrás, Rodolfo estava no principal viaduto do Centro. Pretendia pular. Sua vida estava uma verdadeira droga. Não era valorizado por ninguém – exceto seus pais. Não tinha uma namorada, nem alguém que se importasse com ele. Seu trabalho não fazia o menor sentido para ele e a única coisa que amava – a escrita – não lhe dava um retorno financeiro para que pudesse apostar tudo nessa carreira.
Já estava se preparando para subir no parapeito do viaduto quando uma figura estranha se aproximou. Por um breve momento, Rodolfo pensou ser o Anjo da Morte e até sorriu. Receberia o abraço final de bom grado. Pularia e teria a companhia dele, o Anjo Ceifador, até chegar ao chão.
O homem que se aproximava, estendeu a mão e pediu para que ele não fizesse aquilo. Rodolfo, desapontado ao perceber que não era a Morte, advertiu o sujeito dizendo que, se ele se aproximasse mais, pularia, sim.
Após algum tempo de conversa e negociação, o homem convenceu Rodolfo a se afastar do parapeito.
Depois que Rodolfo contou-lhe suas motivações para cometer tal ato, o homem afirmou que poderia ajudá-lo. Disse que, se desse o nome e o telefone dele para uma firma, lá, publicariam seu livro e ele seria famoso.

- E como o senhor pode ter certeza que vão me publicar? – perguntou um incrédulo Rodolfo.
- Acredito que você tem o perfil ideal para eles. Você só precisa escolher a sua melhor obra e ir lá.
- E s’eu tiver mais de uma obra?
- Bom, pode tentar publicar todas.
- E como nunca ouvi falar dessa agência?
- É que as pessoas só conseguem ser atendidas por indicação. É o único meio. O acesso lá é muito, digamos, restrito. Mas eu posso fazer isso por você. – deu um sorriso. - Só me prometa que não vai pular. – concluiu o misterioso homem.

Rodolfo assentiu. Eles apertaram as mãos. O homem explicou que daria o seu nome e telefone para a firma, depois, alguém lhe ligaria para marcar o dia da entrevista e informaria o endereço para o qual ele deveria ir, quando chegasse lá, seria atendido sem problemas.
Desejou-lhe boa sorte e sucesso. Depois, saiu andando.
Só depois que o homem partiu, ele percebeu que não perguntou o seu nome. Olhou em volta, na tentativa de encontrar alguma testemunha daquele encontro inusitado, mas percebeu-se só.
Ainda sem entender muito bem o que acabara de acontecer, resolveu voltar pra casa. Dois dias depois, recebeu a ligação marcando sua entrevista e lá estava.

***

Após lembrar toda história, ele contou tudo para Demóstenes. Este parecia contente, pois sorria para cada palavra que ouvia.

- Acredito que você tem mesmo o nosso perfil de cliente, senhor Rodolfo. – disse satisfeito.
- Ok... – Rodolfo não sabia ao certo o que dizer em resposta a esse comentário.
- Agora, vamos falar sobre a Firma. – ajeitou-se na cadeira e projetou o tronco para frente, descruzando as mãos e as apoiando sobre a mesa. - Nós não somos exatamente uma agência literária.
- Não?! – interrompeu e se surpreendeu pelo volume da sua voz.
- Calma. Deixe-me concluir. – disse e retomou o raciocínio. - Nós somos uma agência que realiza sonhos. O nosso propósito é fazer com que o seu sonho, o de ser publicado e ter fama, por exemplo, seja realizado.
- E como farão isso se aqui não é uma agência literária? E, muito menos uma editora, pelo que posso ver.
- Senhor Rodolfo, nós garantiremos a publicação do seu livro. E após alguns eventos, garantiremos as vendas e consequentemente, a sua fama.
- Desculpe-me, mas, confesso, não estou entendendo nada! Como assim, vocês não são exatamente uma agência, mas vão publicar meu livro e vão garantir minha fama?! Como podem garantir isso?!
- Seguinte: as pessoas. Digo, o grande público, é movido pela emoção. Quase tudo que consomem é por impulso. Quando há uma comoção muito grande e isso está ligado a um produto, esse produto estoura as vendas. Se um autor de livro, por exemplo, morre de um modo trágico, as prateleiras nunca ficarão cheias, pois os livros irão vender como água no deserto. – disse e observou Rodolfo.
- Mas eu não morri. Estou vivíssimo. – depois concluiu - Graças ao homem que me abordou no viaduto, claro.
- E é justamente agora que entra a Firma. O senhor entrega-nos o seu melhor trabalho e nós o publicaremos. Depois, um evento ocorrerá com o senhor e o seu livro venderá como nunca imaginou em toda a sua Vida.
- Peraí!! – disse Rodolfo enquanto levantava-se de supetão da cadeira, causando um ruído ainda mais desconfortável. - Vocês querem me publicar e depois pretendem me matar para vender os meus livros???!!! Isso só pode ser uma brincadeira!!

Ainda de pé, ficou encarando o senhor Demóstenes, esperando que, em algum momento, o homem risse e dissesse que tudo aquilo não passava de uma piada. Rodolfo esperou até por homens invadindo a sala com câmeras e microfones em punho, prontos para registrar a sua reação e dizendo que eram da TV. Porém, nada disso aconteceu. O silêncio na sala só era quebrado pelo som do ventilador que girava no teto e a respiração pesada do senhor Demóstenes.

- Isso não é uma brincadeira? – perguntou.
- Eu pareço estar brincando, senhor Rodolfo?
- Não. Mas também não percebe que está dizendo um absurdo!!
- Não sei por que pensa isso. Por favor, sente-se. O senhor não é obrigado a aceitar a nossa proposta. Mas poderia, pelo menos, ouvi-la.
- Não, não, não, não, não...!! – disse repetidas vezes enquanto andava de um lado para o outro da sala.
- Por favor, sente-se.

Por fim, Rodolfo sentou-se.

- Eu não entendo como podem fazer uma proposta dessas! Que vantagem eu vou ter se aceitar isso?
- Primeiro de tudo, a garantia de ter sua obra nas livrarias. Depois, ser finalmente reconhecido por seu trabalho. Fama e dinheiro. O que, segundo o senhor, é o seu sonho.
- Mas, comigo morto, não vou aproveitar o dinheiro! Aliás, vocês ficam com o dinheiro das vendas que conseguem?
- O que é isso, senhor Rodolfo?! A Firma é uma empresa séria!! Nós não ficamos com dinheiro de ninguém! Veja bem, fechamos contrato com o cliente. No contrato, ele define quem será o detentor dos direitos da sua obra. E só uma parte é destinada à Firma. O senhor, por exemplo, pode colocar seus pais como detentores dos direitos do seu livro e uma pequena parcela desses direitos, será nossa.
- Simples assim?
- Sim. Simples assim. Há cinco dias, o senhor pretendia se matar. Além de dor e o grande “porquê” de ter feito isso, nada mais iria deixar para os seus pais. Agora, nós lhe daremos a chance de deixá-los confortáveis financeiramente pelo resto da vida. E, mesmo com o trauma da perda, não passarão pela vergonha de ter um filho suicida.
- Mas eu não sou um suicida!! – protestou!
- Cinco dias atrás... – falou calmamente com certo veneno em cada palavra.

Rodolfo baixou a cabeça.

- E como isso vai acontecer?
- Bom, depende de como o senhor deseja morrer.
- Hã?! – Rodolfo parecia completamente incrédulo a tudo aquilo.
- É uma escolha sua.
- Todos aqueles homens na sala de espera, farão a mesma coisa? Todos morrerão para ter suas obras publicadas?
- Sim.
- E como vocês matam essas pessoas?
- Primeiro de tudo, nós não matamos ninguém. São pessoas que, assim como o senhor, não conseguem publicar suas obras e também querem fama e sucesso e também pensam em dar fim na própria vida.
Como queremos ajudar do melhor jeito possível, encontramos uma maneira de que os interesses de todos sejam atendidos.
Nós temos uma rede de contatos. Pessoas que também pretendem se matar, mas nada têm a oferecer culturalmente, são escolhidas para fazer o trabalho. Seja um acidente forjado, de qualquer natureza. Ou assassinato mesmo, seguido de suicídio. É a forma que encontramos para que eles contribuam para um mundo melhor.”

Rodolfo permanecia em silêncio...

- Senhor Rodolfo, eu não li a sua obra. Não sei s’ela é boa ou não. Não sei se o senhor tem um futuro promissor como escritor. Não sei se tem talento. Mas sei que o senhor já foi rejeitado por outras agências e editoras. E sei também que já cogitou o suicídio. O senhor pode sair por aquela porta e tentar mais uma vez. No entanto, a Vida tem se mostrado dura para o senhor. Nós, da Firma, só queremos ajudá-lo a acabar com todo esse sofrimento e deixar o seu legado para que o Mundo veja e lamente a sua perda. Mas fique à vontade para pensar. Só não diga “não!” agora. Pense e depois nos procure.
- Uma curiosidade...

O senhor Demóstenes permaneceu calado. Mas indicou com a cabeça para que Rodolfo continuasse a falar.

- Quem era o cara?
- Que cara? – questionou o senhor Demóstenes.
- O cara que impediu qu’eu pulasse do viaduto.
- Não faço a mínima ideia.
- Como não?! O senhor não conhece as pessoas que trabalham para a Firma?
- Veja bem, nós temos muitos contatos. Temos pessoas atuando em várias áreas para encontrar potenciais clientes.
- Então, dificilmente verei aquele sujeito novamente?
- Se esperar que nós o apresentemos, com certeza, não vai vê-lo.
- Entendi... – Rodolfo deixou a vista se perder num horizonte inexistente, porém, tão rápido foi, rápido voltou. - Ok, eu aceito. – disse e levantou-se como se desafiasse alguém ali na sala.
- Ótimo!! Assim é que se fala! O senhor não vai se arrepender! – o senhor Demóstenes não escondia a euforia em conseguir mais um cliente.
- Mas eu quero escolher como vai acontecer.
- Claro. É um direito do senhor.
- Quero algo heroico. Com certeza vai ajudar a alavancar as vendas.
- Bem pensado.
- Um dos seus homens pode pegar alguém como refém e eu me ofereço pra trocar de lugar com a pessoa e depois, #bum!#, ele me mata!
- Uau! Bem pensado mesmo! Ótima escolha!
- Quando será? Como vamos fazer?
- Calma. Primeiro, nós vamos redigir o seu contrato. O senhor vai lê-lo e ver se concorda com tudo. Depois, entramos em contato para resolver como será o procedimento.

Rodolfo parecia extasiado. Finalmente encontrara um propósito para a sua Vida. Apertou a mão do senhor Demóstenes e saiu.
Atravessou a sala de espera, a porta de entrada e, já na rua, sentiu o calor do sol na pele, o vento agitando seus cabelos, os sons dos carros passando, o cheiro de comida vindo das barraquinhas de lanche na rua ao lado.
Enquanto andava, tinha a sensação de que seus pés não tocavam mais o chão.

Sorriu e pensou: “Porra, como é bom viver!”



(*) TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA ELETRÔNICA "VEM-VÉRTEBRAS".

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