segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

CRUEL

Há horas que ele estava sentado na poltrona, segurando uma arma. Apontava-a para a cabeça, logo em seguida abaixava-a.

- É agora ou nunca. – disse, apontando mais uma vez. Porém, desistiu. – Acho que, pelo visto, é nunca. Sou um fraco.

Aos poucos, bem diante dos seus olhos, apareceu sentada em uma cadeira próxima, uma figura bastante estranha. Pensou que, talvez por causa do cansaço, seus olhos lhe pregavam uma peça. Mas aquela criatura lhe pareceu ser conhecida, apesar de estranha.
Era a Morte.

- Quem é você? – pergunta o homem segurando a arma e pensando em apontar para a tal figura.
- Não parece óbvio pra você? – devolveu.
- Veio me buscar?
- Hunrum. Mas ‘tou esperando você se decidir.
- Como?! E não é você que nos leva?
- Exato. Eu levo. Mas eu não mato ninguém.
- Não entendi.
- Assim... Eu sou a consequência, não sou o ato.
- Como não?! S’é você que nos leva!
- Entenda. Eu não olho pra pessoa e simplesmente levo comigo. Tem que ser o momento da pessoa.
- E agora é o meu momento?
- Isso quem vai decidir é você.
- Eu? Como assim?
- Livre arbítrio, meu caro. Livre arbítrio.
- Então, eu é que decido, é isso?
- Mais ou menos.
- Ei! Mas uma pessoa que sofre um ataque cardíaco, por exemplo, não escolheu isso pra ela.
- É... bom... ahn...
- Ihhh... ‘Tá se contradizendo, né?
- Isso tudo não é tão simples assim. O que você precisa saber é que, quando vocês nascem, já estão... – como posso dizer? – marcados para morrer. Mas em qual situação isso vai ocorrer, já é com vocês. Só quero que saiba que, não gosto de vê-los sofrer neste momento.
- É? E por que você usa essa foice? Vai me dizer que isso aí não dói? – disse enquanto apontava para a foice que a Morte carregava.
- Não, não. Esta foice é apenas figurativa. Você é que quis me ver assim. – apressa-se a Morte em justificar tal ferramenta.
- Eu mesmo, não!! Nunca fiz questão em lhe ver.
- Ah, não? E isso aí na sua mão? – pergunta a Morte, apontando para a arma.
- Bem... bom... Ah, não tenho que lhe dar satisfação.
- Sem dúvida.
- Em todo caso, desisti do suicídio.
- Que bom!
- E você, não vai embora?
- Acho que você não entendeu a nossa conversa.
- É, acho que nã-- Peraí!! Você que dizer que...
- Hunrum.
- Mas e a história de “livre arbítrio”?
- Com relação ao momento, não ao dia.
- Mentirosa.
- Eu não menti! Você é que não entendeu.
- Você é muito cruel.
- Sinto muito.
- Sente nada.
- Ok. Não sinto, não. Apenas não queria deixá-lo desconsolado.
- Hum. Obrigado!

Ele ficou um pouco desconcertado, colocou a arma sobre a mesinha ao lado da poltrona. Os olhos começaram a marejar, depois caiu em um choro descontrolado.

- Eu não quero morrer!!
- Mas você estava com uma arma na mão, apontando para a própria cabeça!
- Não interessa. ‘Tava fazendo aquilo pra ver se me motivava a querer viver.
- Hum... Jeito estranho, viu!
- Você é cruel. Não entende nada disso. Como é que alguém morto vai entender de vida, hein?
- Olha, pode gritar à vontade, mas nada disso vai mudar. Eu apenas executo. Cumpro com uma lista. Antes mesmo de você nascer, seu nome já constava nesta lista aqui. – disse a Morte, apontando para um pergaminho que retirou de sua manga.
- Ah, é? Então, vamos lá. Faça! Arranque a minha cabeça com essa foice. Vamos!
- Uau! ‘Cê deveria ter sido ator ao invés de vendedor.

Ele levanta-se da cadeira, e caminha até o quarto.

- Aonde vai? – pergunta a Morte, levantando-se e seguindo-o.
- Não quero morrer assim. Vou trocar de roupa. E você, fique aí. Não quero que me veja trocar de roupa.
- Acredito que não será necessário lembrar-lhe que não adianta fugir, não é?
- Não, não é. Volto logo. – ao concluir a frase, bateu a porta na cara da Morte.
- Ok. – disse a Morte e voltou para a poltrona.

Após alguns minutos, ele aparece à porta. Com seu melhor terno, barbeado e perfumado.

- Hum. – falou, surpresa em vê-lo todo arrumado.
- Que tal?
- Muito bom! – bateu palmas.
- Obrigado!

Sentou-se novamente na poltrona. Ajeitou cuidadosamente o vinco da calça. Juntou as pontas dos dedos e pigarreou alto.

- Então, vamos lá? – disse de forma austera.
- Nossa! Vejo que se recompôs.
- Nunca fui homem de fugir das coisas. Posso até fraquejar, mas fugir, não.
- Ok.
- Como assim “ok”?
- Eu cheguei cedo porque pensei que você ia antecipar, mas o jeito é esperar.
- Você é realmente cruel. Não tem a menor piedade.
- Meu trabalho não é ter piedade.
- Percebi.

Após algumas horas, e um silencio sepulcral, a Morte levanta-se, pega sua foice e segue em direção a ele.

- Ei, espere um instante.
- Sim?
- Por que é que você pegou a foice? ‘Cê não disse qu’ela era figurativa?
- E é.
- Mas pra que ‘tá vindo em minha direção com ela na mão?
- Eu a utilizo para ceifar a vida. É claro que ela não vai parti-lo ao meio. Mas preciso dela.
- Além de cruel, é mentirosa.
- Ora, vamos. Também não é pra tanto.
- Aham, claro. Falar é fácil, afinal, não é você que ‘tá morrendo.
- Já estou morta, lembra?
- Ah, é. – disse desconcertado. - Outra coisa... Como é que vou morrer?
- Parada cardíaca. – respondeu de forma displicente.
- Mas não tenho nenhum problema no coração!
- Essas coisas acontecem.
- Cruel. Muito cruel.

A Morte projeta a foice para frente e crava a lâmina no peito dele, porém, não saiu sangue do local atingido. Ao retirar a lâmina, a alma veio segurando na lâmina.

- Então, é assim? – perguntou, olhando para o seu corpo sem vida, sentado na poltrona.
- É. E nem doeu.
- Verdade... E agora?
- Agora você me segue.
- Não dá pra fazer aquela última visita as pessoas que amo?
- Isso só acontece em filmes, querido. E se você tivesse a quem amar, não teria pensado em suicídio.
- Cruel.
- Me chamando assim, vou me acostumar.
- Cruel e sarcástica.
- Vamos, já está no meu horário.
- Vamos por onde?
- Basta seguir aquela luz, ali, oh.

Os dois seguiram em direção à luz e sumiram.

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