sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

RESPIRA

- Respira.

Na verdade, ele não disse isso. Apenas pensou. Afinal, impossível falar quando se está submerso.
Enquanto afundava, esperava perder a consciência antes de tocar o fundo do mar.
Havia muita coisa acontecendo ao mesmo tempo... Sentia-se esgotado. Sem saída.
Deixou que a ideia da inexistência do amor tomasse proporções colossais em sua vida. E com o passar dos anos, se afastou gradualmente de todas as pessoas que se importavam com ele.
Inapto para seguir qualquer caminho profissional [pelo menos, era o que achava], pulou de emprego para emprego. E assim, as contas aumentaram.
Um dia, viu-se só, “desamado”, em um subemprego e com muitas dívidas. A única coisa que veio em sua mente naquele momento foi o mar. Sentiu saudade do mar que nunca vira. Nascido e criado longe do litoral, sempre se contentou com os rios e lagos de sua cidade. Nunca foi audaz para ir encontrar o mar. Porém, nesse momento de saudade e vontade, usou os últimos recursos que tinha – que eram poucos –, enfrentou algumas horas de ônibus até chegar na cidade litorânea mais próxima.
Viu aquela imensidão sentiu-se pequeno. Menor do que os grãos de areia que se espalhavam entre os seus dedos a cada passada.
Roubou um pequeno barco que estava ancorado na praia e partiu em direção ao mar aberto. Já distante, parou de remar.
Saltou.

- Respira!

            O coitado não parava de repetir isso para a esposa. Estava muito nervoso. Era o primeiro filho do casal.
E ela lá, em seu trabalho de parto, sentindo todas as dores do mundo, ainda tinha que aturar os gritos nervosos do marido.
            Sentiu vontade de dizer-lhe que não pretendia parar de respirar, portanto, ele não precisava mandar que respirasse. Mas sabia que, no fundo, ele só queria participar daquele momento. Era um bom marido e, tinha tudo para ser o melhor pai que aquela criança poderia querer.
Como se a coitada precisasse de mais dor, ele apertava a mão dela. Estavam os dois prestes a explodir de nervosismo e tensão.
            Por fim, a criança saiu. Em silêncio. Mãe e pai só tinham o mesmo pensamento.

- Respira...

            Repetia para o corpo inconsciente do irmãozinho.
            Os pais se preparavam para sair e proibiram os dois de se aproximarem da piscina. Mas tão logo saíram, ele desafiou o mais novo a dar um mergulho.
            Foram.
Então, começaram a brincar de tentar afogar o outro. Ele não percebeu que forçara tempo demais o irmão embaixo d’água.
            Desesperado, ergueu-o até a borda e sem saber o que fazer, só pedia que ele respirasse.

- Respira.

            Foi a primeira coisa que disse para o namorado quando desceram do carro.
Aquela fazenda ainda tinha cheiro de infância para ela. Apesar de ser da cidade, crescera fazendo visita constante aos avós. Tinha uma relação maior com a fazenda – consequentemente a vida no campo – do que com a “cidade grande”.
Viveu muita coisa boa lá e sabia que, a nova família que estava formando, também iria.
Ele, ainda tentando se acostumar com a ideia dessa mudança radical de vida, estilo, geográfica... Tudo!
Ela, boba olhava para tudo aquilo como se fosse a primeira vez.
O abraçou e só que queria que ele respirasse e sentisse como aquele ar era gostoso e o quanto iria fazer bem aos dois. Aos três, se corrigiu. Pois já carregava uma pequenina em seu ventre. Abraçou-o mais forte.

- Respira.



TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA ELETRÔNICA "VEM-VÉRTEBRAS"

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

LUZ VERMELHA*

A lâmpada que ilumina a entrada é vermelha. Um pouco chamativo demais pro meu gosto, mas há a necessidade. Afinal, em meio a tantos prédios cinza, se destacar é preciso.
Sou recebido pela mesma atendente de sempre. Ela me dá o mesmo sorriso de sempre e me pergunta: "A menina de sempre?". Para não fugir de todo esse ritual, respondo: "Sempre". É um jogo manjado de tão repetitivo, mas, fazer o quê, s'eu gosto de rotina?
Efetuo o pagamento na recepção mesmo. As moças não tocam em dinheiro e nem se discute valor com elas.
Lá dentro, ela já me aguardava. Quando me vê, oferece-me um sorriso tão gostoso que, quase acredito não ser uma transação comercial o que há entre a gente. Ela vem em minha direção, gingando, enrolando os cabelos numa mão e lançando-os para longe. Em cascata, aquele belo cabelo cacheado volta para seu lugar de origem.

- Pontual como sempre! – fala para mim ainda sorrindo.
- Pontual como um relógio britânico! – respondo.
- Na verdade, a expressão é: "pontual como um britânico" ou "preciso como um relógio suíço".
- Hum. Entendi. – digo.

Não, não entendi. E, provavelmente, em breve, esquecerei essa informação. Minha memória é uma bosta!

- Vamos? - me chama e estende a mão para mim.

Sinceramente, poderia passar o dia apenas segurando aquela mão. Pagaria apenas para segurar aquela mão! Seu toque sempre me enche de paz. Mas ela me oferece bem mais que isso.
Entramos no quarto.
O aroma é intenso e a conhecida tontura vem. Esperando por isso, sua mão já está segurando meu braço para me guiar até a cama. Me ajuda a deitar. Deito e sinto seu toque delicado em minha testa.
Dali a pouco, ela começa a murmurar suas palavras [que eu não faço a menor ideia de quais sejam!].
Ainda estou zonzo. E assim, permanecerei até o fim.
Vou me perdendo entre os sussurros, aromas, pensamentos e as mãos dela acidentalmente tocando algum lugar do meu corpo.
Então, a indistinguível frialdade da lâmina me traz um pouco de lucidez quando sua ponta toca meu peito. Dura apenas alguns segundos e antes qu'eu volte ao meu estado de torpor, a excruciante dor da adaga me invade. Sinto algo quente jorrar. Não é sangue. Ela é mestra nisso. Nem uma gota de sangue sequer sai. Porém, algo abandona meu corpo quando a lâmina perfura meu tórax.
Aos poucos, meu coração diminui a batida. A respiração pesa. O Mundo fica mudo ou eu fico surdo, não sei. Finalmente, vejo a luz.
Sempre me pergunto: será a luz vermelha da entrada que vem à minha mente nesse momento?
Morro.

***

- Acabou o tempo. - ela me acorda com sua costumeira voz angelical.
- Já? – esfrego os olhos como se acordasse. - Sei não, heim, mas acho que você está cada vez mais diminuindo o tempo! – protesto em um tom carinhoso.
- Você sabe que não é verdade. Sessenta minutos, como sempre. Menos do que isso, eu não consigo te trazer de volta.
- Então, deixa mais.
- Sessenta minutos. Nem menos, nem mais. Tenho até medo de pensar o que poderia acontecer se eu descuidasse do tempo. – diz isso e se agita toda como se um arrepio houvesse atravessado seu corpo.
- Você é a melhor! Nada aconteceria. Olha só – aponto para meu peito. - Nenhuma cicatriz. Como sempre!
- São coisas diferentes. – finaliza.

Aceno com a cabeça e espalmo as mãos indicando derrota nessa discussão.
Não tenho mais motivos para estender essa conversa, então, despeço-me e confirmo o encontro da semana seguinte.
Porém, antes de sair do quarto, ela segura minha mão e, hesitante, fala:

- Eu sei que não é da minha conta, mas... Você vem aqui toda semana e eu não sei qual é a sua motivação... Digo isso, porque quase todos vêm aqui para tentar rever alguém que perdeu, encontrar um deus ou algo do tipo.

E sem disfarçar o constrangimento, pergunta:

- E você?

Sorrio e respondo:

- Vou te deixar na curiosidade.

Como sempre, saio de lá mais vivo do que nunca.



TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA ELETRÔNICA VEM-VÉRTEBRAS.

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