quinta-feira, 28 de julho de 2016

SANTINHO

Dona Gertrudes era a curandeira do vilarejo. Apesar dela ser tão antiga quanto aquele povoado, em sua casinha afastada de todos, exercia o ofício há menos de quinze anos, desde a chegada de Santinho, seu gatinho.
Talvez por respeito a sua idade, ou pelos acertos, ou simplesmente por não terem parado pra pensar sobre, ela nunca fora questionada por ter começado a fazer o que fazia em momento tão tardio da vida. Até porque, outras coisas chamavam bem mais a atenção de todos, como o seu nada ortodoxo tratamento.
Mas era certo que dona Gertrudes nunca falhava no diagnóstico, para o bem ou para o mal. Com seu jeitinho de vovozinha, calma e sábia, dava a notícia – boa ou má – sempre com muita honestidade e respeito.
E Santinho não desgrudava dela. Todos diziam que ele era o seu ajudante. Porém, imediatamente ela corrigia! E aí se apresentava a única excentricidade de dona Gertrudes: ela insistia que Santinho não era seu ajudante. E sim, ela é que era um instrumento dele. Segundo a curandeira, era o gato quem diagnosticava o problema e sabia a forma de tratar o paciente. Logo, era ele quem curava. E quando ele se recusava em se aproximar de alguém, não havia mais o que fazer. Ela pedia as mais sinceras desculpas e aconselhava a pessoa a viver (o quanto que fosse) da melhor forma possível.
De início, esse comportamento excêntrico, sem dúvida, chamou a atenção, criou alguns desafetos, e até despertou a ira dos religiosos – independente de qual fosse a religião! Afinal, onde já se viu um gato curandeiro?! Se uma mulher curandeira não fosse heresia suficiente, certamente, um gato seria! Chegou a receber a visita do pároco da cidade que lhe pedia que, ao menos, mudasse o discurso. Que atribuísse seus dons a Deus. Apesar de recebê-lo com a educação de sempre, a velhinha se recusou a falar outra coisa que não a verdade. E ainda completou que não queria desapontar o Santinho, afinal, era ele mesmo quem curava as pessoas, não Deus.
Vencido pelo cansaço, o padre foi embora de lá. Decidiu lavar as mãos para aquela situação.
Ela recebeu também a visita de fiéis de várias religiões que se uniram pela primeira vez, porém, com um propósito menos cordial. Foram até lá para destruir a morada da velha. Por sorte, ela tinha seus seguidores também. E estes, a protegeram. Foi um dia atípico para aquela região tão pacata. Ou, pelo menos, todos gostavam de dizer que lá era assim, “uma cidade com pessoas de bem”. Mas não foi bem o que aconteceu. Não houve mortes, mas não foi algo para se orgulhar.
Ela, inabalável a tudo isso, seguia em frente...
Quando o delegado foi averiguar o que acontecia naquela casa, devido ao tumulto que surgia desde a cidade e se espalhava por todos os vilarejos próximos, não teve muito que fazer, ainda mais quando ela argumentou que "não saía de casa, eram as pessoas que a procuravam". E era verdade. Todos que foram curados por dona Gertrudes – ou Santinho – sempre foram até a casa dela. Ela nunca saiu de lá para curar alguém. Até porque, segundo ela, era exigência de Santinho. Ele não saía. Logo, as pessoas que fossem até lá.
Sem ter mais nada a dizer ou perguntar e curioso sobre uma dor nas costas que o atormentava há anos, o homem aproveitou a visita e se consultou com a senhora. Esta lhe pediu que deitasse sobre a mesa da cozinha, que servia de maca nesses momentos.
Após o delegado deitar, dona Gertrudes pediu a Santinho – que estava junto a seu pé esquerdo – que descobrisse o que atormentava aquele senhor. Santinho prontamente pulou sobre as costas do homem que teve um espasmo de susto, mas manteve-se deitado e calado.
O gato cheirou, caminhou, passou a pata levemente sobre um ponto, olhou para a senhora e miou. Um miado rápido e agudo. Ela gemeu em consentimento. O agente da lei questionou se o gato descobrira algo ruim e, em seguida, sentiu-se idiota por acreditar que era realmente o gato quem descobria o problema e curava.
Ela disse que não era nada de ruim. Ou, pelo menos, era algo que podia ser curado. O que ele tinha era "Isso, isso! E bastava tomar aquilo, aquilo!" para ficar tudo bem.
O delegado agradeceu e saiu. Até que um pouco aliviado por descobrir o que lhe afligia e a possibilidade de uma cura. E ignorou intencionalmente o gato que o observava.
Apesar do paradoxal comportamento do homem, afinal, estava descrente, mas pediu ajuda, sabe-se que ele nunca mais reclamou de dor alguma.
Porém, tudo isso é passado. Foram apenas coisas do começo. Numa cidade cercada por hipocrisia, muitos dos que a trataram mal lá atrás, tempos depois, de um jeito ou de outro, a procuraram e se beneficiaram de sua ajuda.
Atualmente, a velhinha encontrara a paz. As pessoas já não a importunavam. Só a procuravam por seus préstimos. E ela atendia apenas se Santinho quisesse. Afinal, o gatinho tinha quinze anos, seu corpo já apresentava todos os sinais de velhice que um idoso pode carregar. Não era fácil levantar ou mesmo caminhar.
Em uma noite, na hora de deitar para dormir, Santinho não conseguiu subir na cama de dona Gertrudes. Ela o tomou em seus braços e o carregou como se carregasse um bebê.

- Chegou a hora de ir, Santinho? – perguntou a velhinha num tom choroso.
- Sim. – respondeu o bichano.
- E o que vai ser de mim?
- Você vem comigo. Assim como todos os outros.
- Mesmo os que você não curou?
- Todos.
- Precisa mesmo fazer isso?
- Foi o combinado desde o princípio. Assim que eu cheguei, disse pra você que levaria todos.
           
Ela apenas assentiu. Santinho estendeu a sua pata e tocou o rosto da velha. Os dois desabaram no chão, já sem vida.
Os seus corpos teriam sido descobertos no dia seguinte se todos no vilarejo, nos vilarejos vizinhos e na cidade, também não estivessem sem vida naquele momento.
Demorou alguns dias até que alguém de passagem pela cidade descobrisse aquele terrível evento: todos mortos. Corpos inanimados espalhados por todos os lugares. Não apresentavam sinais de violência, envenenamento ou qualquer outro tipo de assassinato. Foi como se, simplesmente, a Vida desistisse daquele lugar.
Ninguém nunca se atreveu a povoar aquela região novamente e até alteraram as rotas que passavam por ali. Juravam ser um lugar assombrado ou amaldiçoado.
O vento e a luz do Sol eram os únicos que caminhavam por aquelas ruas.

E em uma casinha no meio do nada, jaz o esqueleto nunca descoberto de uma senhora e em seus ossudos braços, o corpo imaculado de um gato.

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