domingo, 31 de julho de 2016

PELEJA

A minha peleja foi essa:
Dormir, ninguém mais pode
Na minha porta, um estrondo
Ouvi uma voz e procurei o dono
Curioso, olhei pela fresta

Era ele, Malatesta
- um imenso balrog -
Perguntou por que não abandono
A Vida dos meus sonhos
E levo uma vida de festa.

Ora, veja essa
- meio grogue -
Respondi à besta, sou feito de carbono
A terra há de comer o meu crânio
Mas não quero o que não presta

“O que não presta”
De sua boca mole
Pendia uma língua de cachorro
“E digo mais, eu ainda hei de ouvir o teu choro
Nem que eu tenha que fazer uma guerra!”

Riu a fera
Com feições de bode
Seu corpo tremia todo
E dizia, cada vez mais nervoso
“Farei da tua pele a minha tela!”

Há de ser bela!
Mas, daqui, tu não me move
Não serás tu quem vai perturbar o meu sono
Cobri-me com o meu manto

E finalizei: Quer saber? Vai à merda!

sábado, 30 de julho de 2016

UMA NOVA ERA

Estava comendo quando foi tomado por alguns devaneios... Lembrou da época em que as pessoas usavam a Internet. Todas vidradas olhando para os seus dispositivos de comunicação e os dedos frenéticos bailando sobre a tela, digitando suas incontáveis conversas, posts, reclamações, tweets e etc.
Diziam que ninguém se falava mais. Que todos ignoravam todos. Que, finalmente, a individualidade prevalecera... Mal sabiam que quando viessem a Era das Trevas isso seria muito pior.
Tão logo a energia se foi - consequentemente, a Internet também -, as pessoas caíram em um turbilhão de emoções. Depressão, medo, fraqueza, loucura e raiva. Muita raiva. Agiam com fúria. E precisavam descarregar toda aquela frustração de terem sido privados da vida conectada. A violência se fez presente em quase todos os lugares.
Alguns "heróis" tentaram criar meios de resolver isso, utilizando energias alternativas, renováveis, nucleares... Mas falharam. Algo inexplicável aconteceu e nenhum tipo de energia durava. Como mágica, ou maldição, os mecanismos eletrônicos não funcionavam. Foi cogitada a possibilidade de voltar a Era a Vapor e os entusiastas de um certo estilo vibraram achando que iriam ver seus sonhos virando realidade. Mas isso também não aconteceu. Energia alguma durava, sustentava, funcionava. E isso só piorava os ânimos. As pessoas queriam explicações, mas com as comunicações paradas, todas as informações que circulavam eram incompletas, incertas e por vezes, mentirosas.
Óbvio que algumas pessoas se aproveitavam de outras para tomar vantagem.
Falsos profetas surgiram aos borbotões. Por sorte, muitos deles foram degolados quando não conseguiram suprir toda necessidade que o povo desejava. A humanidade havia tomado um rumo que parecia não se importar aonde iria chegar.
Um outro grupo, tentando a todo custo não ser comparado com aqueles – e isso se dava muito mais pelo desejo elitista de “ser diferente” do que com a preocupação pelo ser humano –, conseguiu criar uma regra que logo foi adotada. Para mostrar que ainda eram da Era da Tecnologia, que não importava a ausência dela, foi decidido que todos deveriam manter o hábito de agitar os polegares como se estivessem com um objeto eletrônico nas mãos e o manipulassem. Aquelas pessoas que se sentiam muito idiotas por fazer isso, seguravam algo para emular um aparelho. Outros, não. Defendiam a ideia de que não era o aparelho (nem a Tecnologia) que os fazia civilizados, portanto, agitariam os dedos sim (afinal, não queriam ser excluídos), mas sem nada em mãos. Diziam até que era mais chique.
Essa ideia se espalhou de tal forma que, em pouco tempo, era possível ver as pessoas por todos os lugares com mãos vazias (ou não) e os dedos agitando no ar.
Os debochados passaram a chamar essas pessoas de "tamboriladores" ou, logo depois, de "tambor" (a medida que o tempo foi passando e a necessidade ou vontade de se comunicar ficando mais escassa). E o apelido pegou tão rápido quanto o ato de tamborilar.
As pessoas levavam tão a sério a necessidade de mexer os dedos que com o tempo, aquilo já acontecia naturalmente. Os que nasceram já sob o signo da Escuridão, desde cedo aprendiam a agitar os dedos, mesmo sem ter ideia do porquê faziam aquilo. Era tão natural quanto respirar.
Entre aqueles que degolavam pessoas e faziam justiça com as próprias mãos, mais conhecidos como Bárbaros, também discutiu-se a validade de tamborilar. Alguns achavam um absurdo e propunham decepar os dedos daquele que fizesse isso. Porém, muitos achavam que isso era extremismo (parece que degolar pessoas, não!) e decidiram apenas por excluir de sua nova sociedade as pessoas que insistiam em viver do passado. Então, surgiu uma variação de bárbaros, os Bárbaros Tambor.
Na verdade, para cada desentendimento, um grupo quando não era dizimado, era excluído e, assim, nascia uma nova ordem. Nomes e mais nomes foram surgindo.
Reis, imperadores, presidentes ou ditadores apareciam com o nascer do Sol e caíam antes mesmo que este chegasse ao Oeste.
De repente, ninguém mais queria ser líder. Porém, todos queriam ser liderados, pois não sabiam o que fazer. Em um momento ou outro, era inevitável surgir um. Mas nunca se mantinha por muito tempo. O povo era instável. Não sabia viver sem regras, mas cada vez que aparecia alguém disposto a segui-las, logo era retirado cargo. Isso foi acontecendo com mais e mais frequência.
E assim, a humanidade passou a viver cada vez mais em grupo menores. Laços de sangue ou sentimentos não eram motivos para manter as pessoas próximas. Toda divergência era resolvida com luta, agressões, exclusão ou a morte.
Fugindo uns dos outros, escondiam-se nos esgotos, topos de árvores, buracos... E mesmo aqueles que viviam em grupos, quase não se falavam, se olhavam e, menos ainda, se tocavam.
A fala foi praticamente reduzida a rosnados.
Já não viviam com regras, apenas instinto. Respirar, comer, beber, defecar, guerrear, matar, procriar e tamborilar.
Finalmente, a Humanidade tomou sua real forma: bichos.

Enquanto ele comia, e lembrava das pessoas quando ainda não eram selvagens, ou não se mostravam como tal, até sentiu saudade. Ele era um dos poucos antigos. Daqueles que viveu uma época que quase ninguém lembrava mais. Daria tudo para ver as pessoas com seus dedos em movimentos frenéticos sobre uma tela luminosa e sorrindo para o vazio, como antigamente.
Mas, agora, tudo aquilo não passava de um passado, não muito distante, porém, impossível de ser revivido. Ele terminou de comer o rato que capturara com tanta dificuldade, inspirou fundo e se preparava para voltar para a sua toca. Não era seguro ficar exposto naquele lugar.

Seguiu seu caminho e nem percebeu que seus dedos – sujos de sangue – já não tamborilavam mais.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

OS INOCENTES

"O choro dos inocentes". Pensou ou falou – ele estava com tanto sono que nem tinha certeza qual das duas ações aconteceu. Mas o que sabe é que foi acordado com o choro do bebê dos vizinhos. O que, além de deixá-lo aborrecido, por ter sido acordado em um dia que não precisava levantar cedo, o deixou também intrigado, afinal, aquela criança dificilmente chorava, e menos ainda tão alto e tão esganiçado. Era até um dos motivos que o fazia sorrir para o bebê quando o via.
Não, não gostava de crianças. E para aumentar o seu desagrado, fora acordado com um choro estridente e não restavam dúvidas, era o bebê dos vizinhos. Levantou-se, banhou-se e tomou o café da manhã ouvindo a triste sinfonia de um choro agoniado. Ao sair do seu apartamento, pensou em bater na porta ao lado e perguntar se podia ajudar. Mas o que ele entendia de crianças? De choro? E de interação com vizinhos? Nada! Essa era a resposta para todas as perguntas.
Saiu mais irritado do que o normal e, talvez por isso, não percebeu que, em todo o edifício podia-se ouvir crianças chorando!
De dentro do seu carro, com as janelas cerradas e o rádio ligado, ignorava também o choro que vinha de todos os lugares. Ruas, casas, edifícios, escolas...
O trânsito completamente livre ajudou a aliviar a tensão, mesmo estranhando tal acontecimento. Chegou a perguntar-se se o dia de hoje era domingo ou feriado.
No escritório até esqueceu o episódio com o vizinho bebê. E o substituiu por uma nova preocupação: a ausência da secretária. Além de não ter aparecido para trabalhar – o que era algo totalmente novo –, não ligou ou enviou qualquer mensagem informando o motivo da falta – o que era completamente inadmissível. Resolveu levar a manhã sem esperar por ela. Depois resolveria esse assunto. E tudo correu bem. Porém, na hora do almoço, todo o seu pavor foi renovado.
Sem a secretária, teve que sair para providenciar a própria refeição. Mas não fora isso que o assombrou, apesar de estar acostumado com as benesses de ter alguém que fizesse coisas para ele – como pegar o seu almoço – sabia se virar sozinho muito bem. O pavor outrora citado se deu quando precisou sair do prédio e começou a ouvir um choro constante no caminho do mercado. Quando chegou lá, ouviu novamente gritos e choros e, desta vez, não era apenas uma criança. Eram muitas. Tinha certeza!
Percebeu que não havia nenhum funcionário ou cliente no local. Mas o indistinguível choro se fazia presente. Vasculhou todos os lugares a procura das crianças, mas também não estavam lá. Apenas os seus lamentos mais profundos davam vida – ou o anúncio da morte – ao ambiente deserto.
Ligou para a polícia, e não teve sucesso. Ficou desesperado e resolveu pedir ajuda nos prédios vizinhos. Porém, não havia sequer os porteiros!
Voltou às pressas ao escritório. Agora, atento a tudo, percebeu a ausência dos funcionários do prédio. Sem porteiros, faxineiros, seguranças... Nos outros escritórios, tudo vazio também.
Foi direto à garagem, entrou em seu carro e saiu em disparada. Precisava encontrar alguém que o ajudasse. Desta vez, com as janelas abertas, pode ouvir choros e gritos. Alguns mais próximos do que outros, mas todos igualmente desesperadores.
Em uma rua, reduziu a velocidade do carro, colocou a cabeça para fora e gritou em direção às casas pedindo ajuda. A única resposta que teve, foi o assombroso choro.

Rodou com o carro por todos os lugares até que a gasolina acabou e o veículo parou. O medo invadia seu corpo. Estava paralisado e todos os seus sentidos prestes a explodir de tanta tensão. Não aguentando mais, resolveu sair do carro, sentou-se na calçada, pôs as mãos na cabeça e, angustiado e desnorteado, finalmente encontrou o seu choro fazendo parte daquele coral lamurioso.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

SANTINHO

Dona Gertrudes era a curandeira do vilarejo. Apesar dela ser tão antiga quanto aquele povoado, em sua casinha afastada de todos, exercia o ofício há menos de quinze anos, desde a chegada de Santinho, seu gatinho.
Talvez por respeito a sua idade, ou pelos acertos, ou simplesmente por não terem parado pra pensar sobre, ela nunca fora questionada por ter começado a fazer o que fazia em momento tão tardio da vida. Até porque, outras coisas chamavam bem mais a atenção de todos, como o seu nada ortodoxo tratamento.
Mas era certo que dona Gertrudes nunca falhava no diagnóstico, para o bem ou para o mal. Com seu jeitinho de vovozinha, calma e sábia, dava a notícia – boa ou má – sempre com muita honestidade e respeito.
E Santinho não desgrudava dela. Todos diziam que ele era o seu ajudante. Porém, imediatamente ela corrigia! E aí se apresentava a única excentricidade de dona Gertrudes: ela insistia que Santinho não era seu ajudante. E sim, ela é que era um instrumento dele. Segundo a curandeira, era o gato quem diagnosticava o problema e sabia a forma de tratar o paciente. Logo, era ele quem curava. E quando ele se recusava em se aproximar de alguém, não havia mais o que fazer. Ela pedia as mais sinceras desculpas e aconselhava a pessoa a viver (o quanto que fosse) da melhor forma possível.
De início, esse comportamento excêntrico, sem dúvida, chamou a atenção, criou alguns desafetos, e até despertou a ira dos religiosos – independente de qual fosse a religião! Afinal, onde já se viu um gato curandeiro?! Se uma mulher curandeira não fosse heresia suficiente, certamente, um gato seria! Chegou a receber a visita do pároco da cidade que lhe pedia que, ao menos, mudasse o discurso. Que atribuísse seus dons a Deus. Apesar de recebê-lo com a educação de sempre, a velhinha se recusou a falar outra coisa que não a verdade. E ainda completou que não queria desapontar o Santinho, afinal, era ele mesmo quem curava as pessoas, não Deus.
Vencido pelo cansaço, o padre foi embora de lá. Decidiu lavar as mãos para aquela situação.
Ela recebeu também a visita de fiéis de várias religiões que se uniram pela primeira vez, porém, com um propósito menos cordial. Foram até lá para destruir a morada da velha. Por sorte, ela tinha seus seguidores também. E estes, a protegeram. Foi um dia atípico para aquela região tão pacata. Ou, pelo menos, todos gostavam de dizer que lá era assim, “uma cidade com pessoas de bem”. Mas não foi bem o que aconteceu. Não houve mortes, mas não foi algo para se orgulhar.
Ela, inabalável a tudo isso, seguia em frente...
Quando o delegado foi averiguar o que acontecia naquela casa, devido ao tumulto que surgia desde a cidade e se espalhava por todos os vilarejos próximos, não teve muito que fazer, ainda mais quando ela argumentou que "não saía de casa, eram as pessoas que a procuravam". E era verdade. Todos que foram curados por dona Gertrudes – ou Santinho – sempre foram até a casa dela. Ela nunca saiu de lá para curar alguém. Até porque, segundo ela, era exigência de Santinho. Ele não saía. Logo, as pessoas que fossem até lá.
Sem ter mais nada a dizer ou perguntar e curioso sobre uma dor nas costas que o atormentava há anos, o homem aproveitou a visita e se consultou com a senhora. Esta lhe pediu que deitasse sobre a mesa da cozinha, que servia de maca nesses momentos.
Após o delegado deitar, dona Gertrudes pediu a Santinho – que estava junto a seu pé esquerdo – que descobrisse o que atormentava aquele senhor. Santinho prontamente pulou sobre as costas do homem que teve um espasmo de susto, mas manteve-se deitado e calado.
O gato cheirou, caminhou, passou a pata levemente sobre um ponto, olhou para a senhora e miou. Um miado rápido e agudo. Ela gemeu em consentimento. O agente da lei questionou se o gato descobrira algo ruim e, em seguida, sentiu-se idiota por acreditar que era realmente o gato quem descobria o problema e curava.
Ela disse que não era nada de ruim. Ou, pelo menos, era algo que podia ser curado. O que ele tinha era "Isso, isso! E bastava tomar aquilo, aquilo!" para ficar tudo bem.
O delegado agradeceu e saiu. Até que um pouco aliviado por descobrir o que lhe afligia e a possibilidade de uma cura. E ignorou intencionalmente o gato que o observava.
Apesar do paradoxal comportamento do homem, afinal, estava descrente, mas pediu ajuda, sabe-se que ele nunca mais reclamou de dor alguma.
Porém, tudo isso é passado. Foram apenas coisas do começo. Numa cidade cercada por hipocrisia, muitos dos que a trataram mal lá atrás, tempos depois, de um jeito ou de outro, a procuraram e se beneficiaram de sua ajuda.
Atualmente, a velhinha encontrara a paz. As pessoas já não a importunavam. Só a procuravam por seus préstimos. E ela atendia apenas se Santinho quisesse. Afinal, o gatinho tinha quinze anos, seu corpo já apresentava todos os sinais de velhice que um idoso pode carregar. Não era fácil levantar ou mesmo caminhar.
Em uma noite, na hora de deitar para dormir, Santinho não conseguiu subir na cama de dona Gertrudes. Ela o tomou em seus braços e o carregou como se carregasse um bebê.

- Chegou a hora de ir, Santinho? – perguntou a velhinha num tom choroso.
- Sim. – respondeu o bichano.
- E o que vai ser de mim?
- Você vem comigo. Assim como todos os outros.
- Mesmo os que você não curou?
- Todos.
- Precisa mesmo fazer isso?
- Foi o combinado desde o princípio. Assim que eu cheguei, disse pra você que levaria todos.
           
Ela apenas assentiu. Santinho estendeu a sua pata e tocou o rosto da velha. Os dois desabaram no chão, já sem vida.
Os seus corpos teriam sido descobertos no dia seguinte se todos no vilarejo, nos vilarejos vizinhos e na cidade, também não estivessem sem vida naquele momento.
Demorou alguns dias até que alguém de passagem pela cidade descobrisse aquele terrível evento: todos mortos. Corpos inanimados espalhados por todos os lugares. Não apresentavam sinais de violência, envenenamento ou qualquer outro tipo de assassinato. Foi como se, simplesmente, a Vida desistisse daquele lugar.
Ninguém nunca se atreveu a povoar aquela região novamente e até alteraram as rotas que passavam por ali. Juravam ser um lugar assombrado ou amaldiçoado.
O vento e a luz do Sol eram os únicos que caminhavam por aquelas ruas.

E em uma casinha no meio do nada, jaz o esqueleto nunca descoberto de uma senhora e em seus ossudos braços, o corpo imaculado de um gato.

Boo Box 07

Boo Box 01