Dona Gertrudes era a curandeira do
vilarejo. Apesar dela ser tão antiga quanto aquele povoado, em sua casinha
afastada de todos, exercia o ofício há menos de quinze anos, desde a chegada de
Santinho, seu gatinho.
Talvez por respeito a sua idade, ou pelos
acertos, ou simplesmente por não terem parado pra pensar sobre, ela nunca fora
questionada por ter começado a fazer o que fazia em momento tão tardio da vida.
Até porque, outras coisas chamavam bem mais a atenção de todos, como o seu nada
ortodoxo tratamento.
Mas era certo que dona Gertrudes nunca
falhava no diagnóstico, para o bem ou para o mal. Com seu jeitinho de
vovozinha, calma e sábia, dava a notícia – boa ou má – sempre com muita
honestidade e respeito.
E Santinho não desgrudava dela. Todos
diziam que ele era o seu ajudante. Porém, imediatamente ela corrigia! E aí se
apresentava a única excentricidade de dona Gertrudes: ela insistia que Santinho
não era seu ajudante. E sim, ela é que era um instrumento dele. Segundo a
curandeira, era o gato quem diagnosticava o problema e sabia a forma de tratar
o paciente. Logo, era ele quem curava. E quando ele se recusava em se aproximar
de alguém, não havia mais o que fazer. Ela pedia as mais sinceras desculpas e
aconselhava a pessoa a viver (o quanto que fosse) da melhor forma possível.
De início, esse comportamento
excêntrico, sem dúvida, chamou a atenção, criou alguns desafetos, e até
despertou a ira dos religiosos – independente de qual fosse a religião! Afinal,
onde já se viu um gato curandeiro?! Se uma mulher curandeira não fosse heresia
suficiente, certamente, um gato seria! Chegou a receber a visita do pároco da
cidade que lhe pedia que, ao menos, mudasse o discurso. Que atribuísse seus
dons a Deus. Apesar de recebê-lo com a educação de sempre, a velhinha se
recusou a falar outra coisa que não a verdade. E ainda completou que não queria
desapontar o Santinho, afinal, era ele mesmo quem curava as pessoas, não Deus.
Vencido pelo cansaço, o padre foi
embora de lá. Decidiu lavar as mãos para aquela situação.
Ela recebeu também a visita de fiéis de
várias religiões que se uniram pela primeira vez, porém, com um propósito menos
cordial. Foram até lá para destruir a morada da velha. Por sorte, ela tinha
seus seguidores também. E estes, a protegeram. Foi um dia atípico para aquela
região tão pacata. Ou, pelo menos, todos gostavam de dizer que lá era assim,
“uma cidade com pessoas de bem”. Mas não foi bem o que aconteceu. Não houve
mortes, mas não foi algo para se orgulhar.
Ela, inabalável a tudo isso, seguia em
frente...
Quando o delegado foi averiguar o que
acontecia naquela casa, devido ao tumulto que surgia desde a cidade e se
espalhava por todos os vilarejos próximos, não teve muito que fazer, ainda mais
quando ela argumentou que "não saía de casa, eram as pessoas que a
procuravam". E era verdade. Todos que foram curados por dona Gertrudes –
ou Santinho – sempre foram até a casa dela. Ela nunca saiu de lá para curar
alguém. Até porque, segundo ela, era exigência de Santinho. Ele não saía. Logo,
as pessoas que fossem até lá.
Sem ter mais nada a dizer ou perguntar
e curioso sobre uma dor nas costas que o atormentava há anos, o homem aproveitou
a visita e se consultou com a senhora. Esta lhe pediu que deitasse sobre a mesa
da cozinha, que servia de maca nesses momentos.
Após o delegado deitar, dona Gertrudes
pediu a Santinho – que estava junto a seu pé esquerdo – que descobrisse o que
atormentava aquele senhor. Santinho prontamente pulou sobre as costas do homem
que teve um espasmo de susto, mas manteve-se deitado e calado.
O gato cheirou, caminhou, passou a pata
levemente sobre um ponto, olhou para a senhora e miou. Um miado rápido e agudo.
Ela gemeu em consentimento. O agente da lei questionou se o gato descobrira
algo ruim e, em seguida, sentiu-se idiota por acreditar que era realmente o
gato quem descobria o problema e curava.
Ela disse que não era nada de ruim. Ou,
pelo menos, era algo que podia ser curado. O que ele tinha era "Isso,
isso! E bastava tomar aquilo, aquilo!" para ficar tudo bem.
O delegado agradeceu e saiu. Até que um
pouco aliviado por descobrir o que lhe afligia e a possibilidade de uma cura. E
ignorou intencionalmente o gato que o observava.
Apesar do paradoxal comportamento do
homem, afinal, estava descrente, mas pediu ajuda, sabe-se que ele nunca mais
reclamou de dor alguma.
Porém, tudo isso é passado. Foram
apenas coisas do começo. Numa cidade cercada por hipocrisia, muitos dos que a
trataram mal lá atrás, tempos depois, de um jeito ou de outro, a procuraram e
se beneficiaram de sua ajuda.
Atualmente, a velhinha encontrara a
paz. As pessoas já não a importunavam. Só a procuravam por seus préstimos. E
ela atendia apenas se Santinho quisesse. Afinal, o gatinho tinha quinze anos,
seu corpo já apresentava todos os sinais de velhice que um idoso pode carregar.
Não era fácil levantar ou mesmo caminhar.
Em uma noite, na hora de deitar para
dormir, Santinho não conseguiu subir na cama de dona Gertrudes. Ela o tomou em
seus braços e o carregou como se carregasse um bebê.
- Chegou a hora de ir, Santinho? – perguntou a velhinha num tom choroso.
- Sim. – respondeu o bichano.
- E o que vai ser de mim?
- Você vem comigo. Assim como todos os outros.
- Mesmo os que você não curou?
- Todos.
- Precisa mesmo fazer isso?
- Foi o combinado desde o princípio. Assim que eu cheguei, disse pra
você que levaria todos.
Ela apenas assentiu. Santinho estendeu
a sua pata e tocou o rosto da velha. Os dois desabaram no chão, já sem vida.
Os seus corpos teriam sido descobertos
no dia seguinte se todos no vilarejo, nos vilarejos vizinhos e na cidade,
também não estivessem sem vida naquele momento.
Demorou alguns dias até que alguém de
passagem pela cidade descobrisse aquele terrível evento: todos mortos. Corpos
inanimados espalhados por todos os lugares. Não apresentavam sinais de
violência, envenenamento ou qualquer outro tipo de assassinato. Foi como se,
simplesmente, a Vida desistisse daquele lugar.
Ninguém nunca se atreveu a povoar
aquela região novamente e até alteraram as rotas que passavam por ali. Juravam
ser um lugar assombrado ou amaldiçoado.
O vento e a luz do Sol eram os únicos que
caminhavam por aquelas ruas.
E em uma casinha no meio do nada, jaz o
esqueleto nunca descoberto de uma senhora e em seus ossudos braços, o corpo
imaculado de um gato.