“Ainda
prefiro a existência à extinção.
Talvez
os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que
envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos
que carregamos”
Freud
A
porta da frente do escritório tinha apenas um nome – feito com letras adesivas:
“Firma”. Assim mesmo, com o “F” maiúsculo. Rodolfo não tinha certeza se era
mesmo aquele o lugar que deveria ir, apesar do endereço que tinha anotado,
bater com o local.
A
Firma não estava na lista telefônica. Chegou lá por indicação. Dizem que é o
único modo de ser atendido. Rodolfo adora pensar nessa frase e, principalmente,
na palavra “Dizem”! Ou seja, nada é certo. Ninguém sabe de verdade das coisas.
Dá um ar de mistério e clandestinidade para o seu feito.
Rodolfo
tocou o interfone e, hesitante, disse seu nome. Pediram que esperasse. Após
alguns minutos, o que para Rodolfo pareceu uma eternidade – e até o fez pensar
em ir embora –, alguém abriu a porta para ele. Foi convidado a entrar. Sentou na
sala de espera. Não era o único. Lá, tinha outros homens esperando [percebeu
que não havia nenhuma mulher ali]. Todos aparentavam ser mais velhos que ele,
porém, igualmente tristes. Alguns, bem mais tristes.
Ninguém
se falava e nem se olhava. Porém, como numa coreografia estranha, seus
movimentos eram parecidos. E agarravam algo ao colo. Uma mochila, sacola,
bolsa, caixa... Como se tudo dependesse daquilo que carregavam.
Automaticamente, Rodolfo apalpou a sua pasta para se certificar que trouxera o
seu. E, agora, inconscientemente se sentindo parte daquele grupo, também
agarrou sua pasta e passou a repetir os mesmos movimentos.
Um
a um os homens eram chamados para a outra sala. E quando saíam, pareciam mais
aliviados e felizes até.
Rodolfo
observava os que ainda não haviam sido chamados, se pegou montando uma
narrativa para cada homem ali. Em seguida, perdeu-se em pensamentos sobre tudo
o que poderia acontecer com ele depois daquele momento. A transformação pela
qual sua Vida iria passar.
Ainda
absorto nos seus devaneios, ele foi tirado do seu transe quando ouviu o próprio
nome. Levantou-se de pronto e foi até a outra sala. Esta menor que a sala de
espera, tinha apenas uma mesa de escritório, a cadeira em que estava o homem a
espera de Rodolfo e outra cadeira. Mas nenhum livro. “Que tipo de agência
literária era aquela sem uma estante com um livro sequer?”, pensou.
O
homem ofereceu o seu melhor sorriso a Rodolfo. Este, por sua vez, ficou em pé,
parado. Após a indicação para sentar, ele caminhou sem jeito até a cadeira,
arrastou-a fazendo um barulho desagradável, depois sentou.
-
Então, senhor Rodolfo, conte-me sua história. – perguntou o homem ainda
sustentando o seu sorriso.
-
Minha história... – repetiu Rodolfo na tentativa de ganhar tempo para organizar
os pensamentos e poder contar a “sua história”.
-
Sim, sua história.
-
Minha história ou “minha história”? – perguntou e ergueu a pasta para que o seu
interlocutor a visse.
-
Não, não, senhor Rodolfo, a sua história mesmo. Depois falaremos sobre
essa história aí. – finalizou apontando para a pasta.
-
Posso saber como funciona aqui?
-
O senhor saberá depois que me contar a sua história.
-
Ok. Minha história...
Rodolfo
parecia incerto. Não sabia por onde começar ou o que contar. Pensou que, já que
finalmente alguém se importava em saber algo sobre ele, deveria contar algo
sensacional, repleto de aventuras, mistérios, casos amorosos... Mas a verdade é
que, fora as histórias que Rodolfo criava – em seus textos –, nada de
interessante acontecia com ele. Permaneceu calado. O sorriso do homem começava
a desmoronar e, já sem paciência, ele resolveu quebrar o silêncio.
-
O senhor precisa entender que, para que a Firma possa ajudá-lo, nós temos que
saber algo sobre o senhor: O que o motivou a nos procurar; O que o senhor
espera dos nossos serviços; Como vamos, é, ajudar o senhor... São vários
fatores.
-
Acontece, senhor-- – interrompeu-se – Como é mesmo o nome do senhor?
-
Demóstenes.
-
Certo. Acontece, senhor Demóstenes, que eu não tenho nada de interessante para
contar, logo, eu não sei o que contar.
-
Mas ninguém pediu uma história interessante. Quero apenas que me fale sobre o
senhor.
-
Bom, s’é assim... Eu tenho 30 anos. Sou solteiro. Sou filho único, ainda moro
com os meus pais e trabalho em um escritório.
-
O que faz lá?
-
Sinceramente, nem eu sei.
-
Entendo.
Depois
de um breve silêncio, o senhor Demóstenes continuou.
-
E qual é a sua atividade? Digo, o que o senhor pretende conosco?
-
Aqui é uma agência literária, não? Eu escrevo desde os 10 anos de idade, mas nunca
publiquei um livro. E é isso o que eu pretendo.
-
O senhor tentou publicá-los antes?
-
Claro que sim. Mas nunca consegui. Não fui aceito em nenhuma editora.
-
E publicação independente, tentou?
-
Não disponho de uma quantia necessária para fazer isso.
-
Senhor Rodolfo, o senhor quer apenas ser publicado ou quer vender e ter fama?
-
As duas coisas! – respondeu quase num ganido.
-
Como o senhor ficou sabendo sobre a Firma?
-
É um pouco embaraçoso, preferia não responder isso.
-
Então, acho melhor ir embora. Aqui, nós não temos tempo para perder com
“embaraços”, senhor Rodolfo. Aqui ajudamos os nossos clientes a realizarem seus
sonhos.
-
Mas o senhor não entende... – tentou protestar sem muita convicção.
-
Se o senhor não me contar, realmente, não entenderei! – o senhor Demóstenes
finalizou e, após falar isso, recostou-se no espaldar de sua cadeira, cruzou os
dedos sobre a barriga farta e com a boca franzida forçava uma respiração pesada
pelo nariz.
Rodolfo
analisava como poderia contar para Demóstenes sobre a noite que conheceu o
homem que lhe indicou a Firma sem correr o risco de perder a chance de ser
publicado. Porém, se não contasse, perderia a chance de ser publicado.
Então,
as lembranças vieram como uma enchente, e inundaram sua mente.
***
Cinco
noites atrás, Rodolfo estava no principal viaduto do Centro. Pretendia pular.
Sua vida estava uma verdadeira droga. Não era valorizado por ninguém – exceto
seus pais. Não tinha uma namorada, nem alguém que se importasse com ele. Seu
trabalho não fazia o menor sentido para ele e a única coisa que amava – a
escrita – não lhe dava um retorno financeiro para que pudesse apostar tudo
nessa carreira.
Já
estava se preparando para subir no parapeito do viaduto quando uma figura
estranha se aproximou. Por um breve momento, Rodolfo pensou ser o Anjo da Morte
e até sorriu. Receberia o abraço final de bom grado. Pularia e teria a
companhia dele, o Anjo Ceifador, até chegar ao chão.
O
homem que se aproximava, estendeu a mão e pediu para que ele não fizesse
aquilo. Rodolfo, desapontado ao perceber que não era a Morte, advertiu o
sujeito dizendo que, se ele se aproximasse mais, pularia, sim.
Após
algum tempo de conversa e negociação, o homem convenceu Rodolfo a se afastar do
parapeito.
Depois
que Rodolfo contou-lhe suas motivações para cometer tal ato, o homem afirmou
que poderia ajudá-lo. Disse que, se desse o nome e o telefone dele para uma
firma, lá, publicariam seu livro e ele seria famoso.
-
E como o senhor pode ter certeza que vão me publicar? – perguntou um incrédulo Rodolfo.
-
Acredito que você tem o perfil ideal para eles. Você só precisa escolher a sua
melhor obra e ir lá.
-
E s’eu tiver mais de uma obra?
-
Bom, pode tentar publicar todas.
-
E como nunca ouvi falar dessa agência?
-
É que as pessoas só conseguem ser atendidas por indicação. É o único meio. O
acesso lá é muito, digamos, restrito. Mas eu posso fazer isso por você. – deu
um sorriso. - Só me prometa que não vai pular. – concluiu o misterioso homem.
Rodolfo
assentiu. Eles apertaram as mãos. O homem explicou que daria o seu nome e
telefone para a firma, depois, alguém lhe ligaria para marcar o dia da
entrevista e informaria o endereço para o qual ele deveria ir, quando chegasse
lá, seria atendido sem problemas.
Desejou-lhe
boa sorte e sucesso. Depois, saiu andando.
Só
depois que o homem partiu, ele percebeu que não perguntou o seu nome. Olhou em
volta, na tentativa de encontrar alguma testemunha daquele encontro inusitado,
mas percebeu-se só.
Ainda
sem entender muito bem o que acabara de acontecer, resolveu voltar pra casa.
Dois dias depois, recebeu a ligação marcando sua entrevista e lá estava.
***
Após
lembrar toda história, ele contou tudo para Demóstenes. Este parecia contente,
pois sorria para cada palavra que ouvia.
-
Acredito que você tem mesmo o nosso perfil de cliente, senhor Rodolfo. – disse
satisfeito.
-
Ok... – Rodolfo não sabia ao certo o que dizer em resposta a esse comentário.
-
Agora, vamos falar sobre a Firma. – ajeitou-se na cadeira e projetou o tronco
para frente, descruzando as mãos e as apoiando sobre a mesa. - Nós não somos
exatamente uma agência literária.
-
Não?! – interrompeu e se surpreendeu pelo volume da sua voz.
-
Calma. Deixe-me concluir. – disse e retomou o raciocínio. - Nós somos uma
agência que realiza sonhos. O nosso propósito é fazer com que o seu sonho, o de
ser publicado e ter fama, por exemplo, seja realizado.
-
E como farão isso se aqui não é uma agência literária? E, muito menos uma
editora, pelo que posso ver.
-
Senhor Rodolfo, nós garantiremos a publicação do seu livro. E após alguns
eventos, garantiremos as vendas e consequentemente, a sua fama.
-
Desculpe-me, mas, confesso, não estou entendendo nada! Como assim, vocês não
são exatamente uma agência, mas vão publicar meu livro e vão garantir minha
fama?! Como podem garantir isso?!
-
Seguinte: as pessoas. Digo, o grande público, é movido pela emoção. Quase tudo
que consomem é por impulso. Quando há uma comoção muito grande e isso está
ligado a um produto, esse produto estoura as vendas. Se um autor de livro, por
exemplo, morre de um modo trágico, as prateleiras nunca ficarão cheias, pois os
livros irão vender como água no deserto. – disse e observou Rodolfo.
-
Mas eu não morri. Estou vivíssimo. – depois concluiu - Graças ao homem que me
abordou no viaduto, claro.
-
E é justamente agora que entra a Firma. O senhor entrega-nos o seu melhor
trabalho e nós o publicaremos. Depois, um evento ocorrerá com o senhor e o seu
livro venderá como nunca imaginou em toda a sua Vida.
-
Peraí!! – disse Rodolfo enquanto levantava-se de supetão da cadeira, causando
um ruído ainda mais desconfortável. - Vocês querem me publicar e depois
pretendem me matar para vender os meus livros???!!! Isso só pode ser uma
brincadeira!!
Ainda
de pé, ficou encarando o senhor Demóstenes, esperando que, em algum momento, o
homem risse e dissesse que tudo aquilo não passava de uma piada. Rodolfo
esperou até por homens invadindo a sala com câmeras e microfones em punho,
prontos para registrar a sua reação e dizendo que eram da TV. Porém, nada disso
aconteceu. O silêncio na sala só era quebrado pelo som do ventilador que girava
no teto e a respiração pesada do senhor Demóstenes.
-
Isso não é uma brincadeira? – perguntou.
-
Eu pareço estar brincando, senhor Rodolfo?
-
Não. Mas também não percebe que está dizendo um absurdo!!
-
Não sei por que pensa isso. Por favor, sente-se. O senhor não é obrigado a
aceitar a nossa proposta. Mas poderia, pelo menos, ouvi-la.
-
Não, não, não, não, não...!! – disse repetidas vezes enquanto andava de um lado
para o outro da sala.
-
Por favor, sente-se.
Por
fim, Rodolfo sentou-se.
-
Eu não entendo como podem fazer uma proposta dessas! Que vantagem eu vou ter se
aceitar isso?
-
Primeiro de tudo, a garantia de ter sua obra nas livrarias. Depois, ser
finalmente reconhecido por seu trabalho. Fama e dinheiro. O que, segundo o
senhor, é o seu sonho.
-
Mas, comigo morto, não vou aproveitar o dinheiro! Aliás, vocês ficam com o
dinheiro das vendas que conseguem?
-
O que é isso, senhor Rodolfo?! A Firma é uma empresa séria!! Nós não ficamos com
dinheiro de ninguém! Veja bem, fechamos contrato com o cliente. No contrato,
ele define quem será o detentor dos direitos da sua obra. E só uma parte é
destinada à Firma. O senhor, por exemplo, pode colocar seus pais como
detentores dos direitos do seu livro e uma pequena parcela desses direitos,
será nossa.
-
Simples assim?
-
Sim. Simples assim. Há cinco dias, o senhor pretendia se matar. Além de dor e o
grande “porquê” de ter feito isso, nada mais iria deixar para os seus pais.
Agora, nós lhe daremos a chance de deixá-los confortáveis financeiramente pelo
resto da vida. E, mesmo com o trauma da perda, não passarão pela vergonha de
ter um filho suicida.
-
Mas eu não sou um suicida!! – protestou!
-
Cinco dias atrás... – falou calmamente com certo veneno em cada palavra.
Rodolfo
baixou a cabeça.
-
E como isso vai acontecer?
-
Bom, depende de como o senhor deseja morrer.
-
Hã?! – Rodolfo parecia completamente incrédulo a tudo aquilo.
-
É uma escolha sua.
-
Todos aqueles homens na sala de espera, farão a mesma coisa? Todos morrerão
para ter suas obras publicadas?
-
Sim.
-
E como vocês matam essas pessoas?
-
Primeiro de tudo, nós não matamos ninguém. São pessoas que, assim como o
senhor, não conseguem publicar suas obras e também querem fama e sucesso e
também pensam em dar fim na própria vida.
“Como queremos ajudar do melhor jeito
possível, encontramos uma maneira de que os interesses de todos sejam
atendidos.
“Nós temos uma rede de contatos. Pessoas que
também pretendem se matar, mas nada têm a oferecer culturalmente, são
escolhidas para fazer o trabalho. Seja um acidente forjado, de qualquer
natureza. Ou assassinato mesmo, seguido de suicídio. É a forma que encontramos
para que eles contribuam para um mundo melhor.”
Rodolfo
permanecia em silêncio...
-
Senhor Rodolfo, eu não li a sua obra. Não sei s’ela é boa ou não. Não sei se o
senhor tem um futuro promissor como escritor. Não sei se tem talento. Mas sei
que o senhor já foi rejeitado por outras agências e editoras. E sei também que
já cogitou o suicídio. O senhor pode sair por aquela porta e tentar mais uma
vez. No entanto, a Vida tem se mostrado dura para o senhor. Nós, da Firma, só
queremos ajudá-lo a acabar com todo esse sofrimento e deixar o seu legado para
que o Mundo veja e lamente a sua perda. Mas fique à vontade para pensar. Só não
diga “não!” agora. Pense e depois nos procure.
-
Uma curiosidade...
O
senhor Demóstenes permaneceu calado. Mas indicou com a cabeça para que Rodolfo
continuasse a falar.
-
Quem era o cara?
-
Que cara? – questionou o senhor Demóstenes.
-
O cara que impediu qu’eu pulasse do viaduto.
-
Não faço a mínima ideia.
-
Como não?! O senhor não conhece as pessoas que trabalham para a Firma?
-
Veja bem, nós temos muitos contatos. Temos pessoas atuando em várias áreas para
encontrar potenciais clientes.
-
Então, dificilmente verei aquele sujeito novamente?
-
Se esperar que nós o apresentemos, com certeza, não vai vê-lo.
-
Entendi... – Rodolfo deixou a vista se perder num horizonte inexistente, porém,
tão rápido foi, rápido voltou. - Ok, eu aceito. – disse e levantou-se como se
desafiasse alguém ali na sala.
-
Ótimo!! Assim é que se fala! O senhor não vai se arrepender! – o senhor
Demóstenes não escondia a euforia em conseguir mais um cliente.
-
Mas eu quero escolher como vai acontecer.
-
Claro. É um direito do senhor.
-
Quero algo heroico. Com certeza vai ajudar a alavancar as vendas.
-
Bem pensado.
-
Um dos seus homens pode pegar alguém como refém e eu me ofereço pra trocar de
lugar com a pessoa e depois, #bum!#, ele me mata!
-
Uau! Bem pensado mesmo! Ótima escolha!
-
Quando será? Como vamos fazer?
-
Calma. Primeiro, nós vamos redigir o seu contrato. O senhor vai lê-lo e ver se
concorda com tudo. Depois, entramos em contato para resolver como será o
procedimento.
Rodolfo
parecia extasiado. Finalmente encontrara um propósito para a sua Vida. Apertou
a mão do senhor Demóstenes e saiu.
Atravessou
a sala de espera, a porta de entrada e, já na rua, sentiu o calor do sol na
pele, o vento agitando seus cabelos, os sons dos carros passando, o cheiro de
comida vindo das barraquinhas de lanche na rua ao lado.
Enquanto
andava, tinha a sensação de que seus pés não tocavam mais o chão.
Sorriu
e pensou: “Porra, como é bom viver!”
(*) TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA ELETRÔNICA "VEM-VÉRTEBRAS".